Amor e paixão

In ABCD, Artigo On
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Por Guttemberg Guarabyra*

Os chineses acham que a paixão é apenas um caminho para o amor. E que a diferença entre paixão e amor é que a paixão é doida, é loucura, é querer prender. Enquanto o amor é sereno e jamais tolher a liberdade de quem se gosta. Mas que, pela paixão, pode-se chegar lá. Paixão é redemoinho, amor é desaguar no mar. “Mas é tudo um rio só”, dizia de si para si, enquanto andava de um lado para o outro do quarto como um macaco enjaulado, lendo e relendo o livro de provérbios chineses, tentando desesperadamente entender o que ocorria.

“Ela é minha!” Às vezes parava e olhava para um ponto distante, enquanto retorcia o cordãozinho de ouro no pescoço. E repetia a frase, baixinho. Logo, porém, lembrava que os provérbios provavam que a atitude possessiva do apaixonado é tão doentia que acaba espantando a pessoa. Sendo assim, enquanto fosse só um apaixonado ainda a caminho do amor, seria impossível sentir-se seguro. Se um dia tivesse menos ciúme, se ficasse menos desesperado durante sua ausência; enfim, se a amasse o tempo todo, mesmo quando soubesse, como agora, que ela estava em outro lugar e com outro sujeito, aí, sim, ele a teria, definitivamente, sem perturbação. Na atual situação, era impossível não sentir um misto de ódio e medo.

Outro dia, quando ela falava ao telefone para combinar a viagem, notou que não havia ficado satisfeita com alguma coisa. Quando desligou, soubera que não viajaria mais com a habitual companheira de serviço, mas com outro engenheiro, que ela mal conhecia. Ficariam fora durante dois dias. Ela trataria da parte burocrática enquanto ele visitaria pessoalmente as obras. Ora, se fosse assim, a essa hora ela já deveria estar de volta ao hotel. Portanto, já deveria ter ligado. Precisava ficar calmo. Não gostaria que ela percebesse o quanto estava nervoso quando se falassem. Não queria fazer o papel ridículo de marido ciumento. “Calma, calma”, dizia para si mesmo.

Tinha viajado no dia anterior. Logo que aterrissou, antes mesmo de pegar a bagagem na esteira, já havia ligado dizendo que o voo transcorrera bem e que ele não se preocupasse, pois o novo colega de serviço era um sujeito muito sério. Antes não fosse. “Que mulher não prefere um sujeito sério?”, alardeavam os diabinhos dentro de sua cabeça. Imediatamente, o provérbio chinês, cuja essência provava que pensamentos negativos é coisa de gente inferior, vinha-lhe à cabeça. Procurou livrar-se dos maus pensamentos, lembrando-se de como tinha sido bom o telefonema de boa-noite, antes de dormir, quando ligou do hotel para um papo longo e gostoso. Para tentar serenar, resolveu parar de macaquear de um lado para o outro e ligar a tevê; depois se dirigiu para o bar e preparou um uísque.

Esses programas jornalísticos de fim de tarde só mostram tragédias. Mas não precisava apresentar, justo naquela hora, a morte de uma mulher por um marido ciumento. Aumentou o volume. Um amigo viu a mulher do sujeito andando por um bairro distante. Pensou até em dar-lhe carona; mas, enquanto procurava um lugar bom para estacionar e chamá-la, ela tomara o ônibus. Só depois de ter narrado o fato ao marido é que ficou sabendo que ele não tinha a menor ideia do que a mulher estava fazendo num local tão afastado. Resolveu investigar e deu no que deu. Paixão desenfreada. Ciúme. Crime.

Mudou de estação. Passava uma novela. Temendo que surgisse mais um marido traído, trocou novamente de canal. Caiu no filme da Feiticeira, a bruxa boazinha da série de tevê. Sentou-se e, enfim, teve meia hora de paz saboreando a harmonia perfeita do casal de cinema. Queria que fosse tudo assim entre ele e a mulher. No entanto, aquilo só acontecia no cinema. Mesmo assim, sentiu uma ponta de inveja de ter também uma mulher que bastava mover o narizinho para que os problemas maiores fossem resolvidos.

Em um gesto imitativo, talvez até efeito do bom uísque, tentou mexer o nariz como a feiticeira da tevê e desejou o milagre de aquele telefone tocar. O telefone continuou mudo, mas a campainha berrou. Alguém tascou o dedo no botão e não o tirou mais de lá. Em pânico, largou o copo sobre a cadeira ao lado e saiu correndo em direção à porta, fulo da vida. Abriu e lá estava ela, linda, várias sacolas penduradas nos dois braços e a mala ainda perto do elevador. Tinha dado para acabar o serviço todo pela manhã e resolvera fazer a surpresa de antecipar a chegada sem ter avisado. Naquela noite, extremamente feliz, esperou que ela dormisse para ficar a admirá-la um tempão. O sono acabou indo embora. Levantou-se devagar e foi até a cozinha tomar um copo de água. Ao passar pela sala, notou o livro de provérbios ainda aberto na página que estivera lendo naquelas horas atormentadoras. Lembrou que paixão é redemoinho e que, no meio da corrente tormentosa, o coração do navegante fica angustiado. Sentiu o peito e notou que o coração estava até muito tranquilo. Sorrindo sozinho, tentou novamente mover o nariz como a Feiticeira — e desejou que o rio chegasse logo ao mar.

Música do dia

E hoje é uma música mais que especial. Os leitores de ABCD REAL são brindados por Guarabyra com uma canção absolutamente inédita, como ele mesmo escreve: “Esta vai ser realmente bônus para os leitores. Nós, o trio (Sá, Rodrix & Giarabyra), começamos a gravar um disco e depois mudamos de ideia. Mas chegamos a deixar quatro faixas prontas. Esta é uma delas. Jamais foi lançada. Totalmente inédita.”

Que presentaço! Curtam! Com essa voz lindíssima de Zé Rodrix em destaque.

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
  • O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
  • Esta crônica, por exemplo, “Amor e paixão”, está nas páginas 53, 54 e 55 dessa publicação imperdível, do mesmo nome.
  • Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas, em conclusão, o Diário Popular.

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