As rasteiras que a vida dá

In Artigo On
  • Guttemberg Guarabyra

Castanheira, o português dono da farmácia, nutria um imenso preconceito contra negros. Mais de uma vez o ouvi reclamando da presença deles em seu estabelecimento.

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Quando saí da Engenhoca, em Niterói, e fui morar no bairro do Cachambi, no Rio, me senti ganhando um upgrade.

A Engenhoca do meu tempo, em que o Largo de São Jorge era mais conhecido como Largo da Morte, por mais que a amasse, tivesse grandes amigos, não havia como dizer que se tratava de um lugar pacífico e aprazível.

Numa noite, regressávamos, eu, irmãos e nossa mãe, da casa de meus avós maternos, que moravam cerca de meio quilômetro da gente, e cruzamos com um senhor conduzindo um pesado carrinho de mão. Dirigiu-nos um boa-noite, que respondemos em coro.

A iluminação pública era pra lá de precária, com postes de madeira feitos de troncos tortos e magricelas. A luz amarelada, de tão fraca não permitia uma visão nítida do conteúdo do carrinho.

Mas pelo formato dava para ver que se tratava de canos.

O homem seguiu rua acima e a gente rua abaixo até nossa casa. No dia seguinte estávamos sem água. Os canos d’água, que naquela época eram de metal, que levavam a água da rua até nossa caixa d’água, haviam sido surrupiados de nosso quintal. Imediatamente lembramos de nosso boa-noite em coro respondido ao ladrão.

Castanheira, o português dono da farmácia, nutria um imenso preconceito contra negros. Mais de uma vez o ouvi reclamando da presença deles em seu estabelecimento.

Uma noite, ao ver em sua calçada o malandro Mizinho, que, pasmem, costumava usar sofisticados sapatos de crochê com sola de borracha, não se conteve e veio cá fora ofendê-lo.

Assisti toda a cena.

Mizinho era um enigma no bairro. Metade dos meninos da rua dizia que era um sujeito perigoso. A outra metade via no negro ágil e elegante, de andar gingado leve e perfeito no equilíbrio, um verdadeiro artista. E, em segredo, o idolatrava.

Castanheira avançou sobre o malandro, que, rápido como um raio, se defendeu aplicando-lhe uma elegantíssima rasteira.

O coroa de vastos bigodes foi de cara ao chão e perdeu os sentidos.

Chamaram uma ambulância, e lá se foi Castanheira dormir em outras paradas.

Em Cachambi, num de meus primeiros domingos na igreja que passaria a frequentar, no intervalo de um culto participava de uma rodinha de bate papo com os futuros amigos.

Na conversa surgiu um típico assunto de meninos. O tema era o de como se defender numa briga. Cada um opinou a seu modo, e as técnicas de defesa versaram do boxe à luta-livre.

Eu, vindo da Engenhoca, escolhi advogar a rasteira como opção de defesa.

Ao notar que a opção era desconhecida por aquelas plagas, resolvi exemplificar.

Fui em direção a um dos novos amigos, cutuquei a ponta do pé esquerdo no chão ao lado dele, que imediatamente pulou o mais alto que pôde, retirando os dois pés do chão.

Com o pé direito dei-lhe um ligeiro toque enquanto estava no ar, e o agora quem sabe novo ex amigo desabou no chão feito uma jaca caindo do pé.

Machucou-se bastante.

Na Engenhoca, se fizesse a mesma simulação de ataque, jamais o atacado pularia tirando os dois pés do chão. Apenas amoleceria a perna que seria atingida e firmaria a outra no chão o mais firme que pudesse, como apoio.

Daquele dia em diante fiquei malvisto e meio que tachado à boca pequena como um cara violento, de quem deveriam tomar cuidado. Com o tempo, viram que não era nada disso.

Mas o incidente me provou que estava num bairro mais pacífico, em que os colegas eram inclusive meio imaturos no trato da violência, e que, portanto, o upgrade que havia imaginado era a mais pura realidade.

No dia seguinte do entrevero na farmácia da Engenhoca, fiquei sabendo que a ambulância que conduzia Castanheira sofrera um acidente a caminho do hospital, e que o velho português havia se dado mal no desastre e morrido.

A vida nos passa cada rasteira.

Música do dia.

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.

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