A dor de uma carícia perdida

In ABCD, Artigo On
- Updated

Guttemberg Guarabyra*

Seu Wilson, o dono do bar, lançou-me um olhar vago, de desmemoriado ou de quem já pensa em esquecer a cena, embora ela ainda estivesse ali, à sua frente, vivíssima. Aliás, vivíssima uma ova. Empreguei o termo como pura força de expressão, porque o suicida estava mais do que morto, sentado no chão e recostado à pilastra do botequim. Os que assistiram ao desfecho da vida daquele desconhecido repetiam para os recém-chegados, como eu, o que havia se passado:— o homem pediu um guaraná, colocou um pozinho dentro do copo, solicitou uma colherinha para mexer, misturou o composto muito bem e tomou tudo de uma só vez. Em seguida, foi recostar-se à pilastra. Cinco minutos depois, deu um gemido, levou as mãos ao estômago e foi escorregando devagarinho até o chão.

Seu Wilson só desfez o olhar desencantado quando pedi para ver o copo. Como se tivesse saído de um transe, murmurou algo ininteligível e trouxe o recipiente, ainda com a colherinha dentro e envolto em um guardanapo. Alertou-me para que não tocasse nele, pois a polícia talvez precisasse das impressões digitais para identificar o sujeito. Mal disse isso, entrou uma mulher esbaforida e, apartando a todos, correu em direção ao cadáver. Gritou: “Carlos!”, e teve um troço. Foi amparada por muitos braços que a puseram numa cadeira, enquanto alguém providenciava água com açúcar. Logo que se acalmou, vieram as perguntas: “A senhora o conhece?”, “De onde?”, “O que fazia?”. A mulher, embora mais tranquila, ainda permanecia em estado de choque e nada respondia, apenas balançava seguidamente a cabeça, com certeza tentando se livrar da imagem e até do fato. O cadáver, nesse momento, restava esquecido e abandonado.

Aproveitei para chegar perto do desafortunado e observá-lo melhor. Vestia calça e paletó cinza com listinhas brancas verticais. O terno, percebia-se, já se encontrava um tanto puído; mas a camisa social, sem gravata, era nova. Da mão direita, bem fechada, escapava um pedacinho de papel. Agachei-me para olhar bem de perto, quem sabe não seria um bilhete? Atento à minha observação, seu Wilson esclareceu-me de que se tratava somente do papel que trazia o veneno. “Carlos!”, a mulher gritou de novo, de repente, levantando-se e aproximando-se do morto. Repetiu dezenas de vezes o nome enquanto suas mãos o acariciavam, tentando ainda incutir-lhe um pouco de vida.

Contou que o conhecia de vista e de cumprimento. Moravam próximos, num lugar solitário e ermo dali da periferia. Revelou que era muito reservado, vivia e andava sempre sozinho, não gostava de jogar papo fora e que apenas pôde conversar melhor com ele cerca de dois anos antes, quando ele hospedara um irmão que o visitava. Naquela ocasião, Carlos se aproximou dos vizinhos talvez para tentar mostrar ao mano que levava uma vida normal, que se relacionava bem com a vizinhança etc., etc. Mas assim que o irmão se despediu voltou a ser o que era. Ana Maria — era esse o nome da mulher que agora o velava —, que também vivia só, depois de muito acariciá-lo, confessou que aos poucos e inexplicavelmente viu-se apaixonada por Carlos. Único motivo, aliás, pelo qual, ao notar que Carlos se tornava cada dia mais deprimido, passou a vigiá-lo. Disse que era a terceira ou quarta vez que o seguia até o bar de seu Wilson — fato que o dono confirmou.

Enfim, depois que veio o rabecão e o levou, tudo o que restou de Carlos foi a dor daquela carícia perdida e uma casa onde o esquecimento e a lembrança substituirão para sempre a presença do morador que saiu para ir até a esquina da vida e perdeu a vontade de voltar.

Músicas do dia:

“Pra Dizer Adeus”, a seguir, interpretada por Elis Regina, é uma composição de Torquato Neto e Edu Lobo.

*Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras. Esta crônica, “A dor de uma carícia perida” está nas páginas 17 e 18 dessa publicação imperdível. Músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu da mesma forma O Outro Lado do Mundo, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas o Diário Popular.

You may also read!

Marcelo Oliveira assina a ordem de serviço construir o Terminal Itapark

O espaço atenderá 18 linhas de ônibus e deve beneficiar a região, que tem cerca de 60 mil habitantes,

Read More...

Nova etapa do Viaduto Estaiado Robert Kennedy marca 100 dias de gestão com avanço na mobilidade urbana de São Bernardo 

Obra reforça, acima de tudo, o compromisso do governo com a modernização da cidade e a entrega de grandes

Read More...

Prefeitura organiza próximas etapas do Prodesa, maior programa contra enchente de São Caetano

Equipes da Prefeitura de São Caetano do Sul e do Prodesa (Programa de Desenvolvimento Ambiental e Saneamento Básico) se

Read More...

Leave a reply:

Your email address will not be published.

Mobile Sliding Menu