Guttemberg Guarabyra
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A pena vinha de ver aquele emaranhado de árvores e arbustos desconhecidos, esturricados, torcidos, retratos de sofrimento.
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Sentir prazer em tostar a cara ao sol. Pedalar até a exaustão. Ouvir os pneus ora quebrando o solo ressequido ora chiando ao atravessar a areia quente. Seca. Seco.
Voltar pra casa esfomeado, suado, jogar o chapéu de palha sobre o sofá e catar o almoço nas panelas em cima do fogão à lenha, pois que todos já haviam almoçado e o menino retardatário, de férias, apreciava comer sozinho no alpendre.
A paisagem recém visitada passando como um filme na mente. A cada garfada uma curva, um desvio de tronco seco, os arbustos defuntos definhando sob o sol ardente.
Sinal de vida apenas na corrida dos calangos a se esconder assustados pelo rugir das pedaladas, os sinais mínimos na vibração do terreno, a corrente batendo na proteção metálica.
Barriga cheia, estatelar-se por dez minutos na cama, fachos de luz escapando pelas frestas do telhado como holofotes de espetáculo riscando o espaço a projetar telas iluminadas nas paredes.
Pegar um livro e logo o largar. Ir à janela que dá pra rua e sentir a chama do ar quente vindo de fora da casa fresca, pé direito amplo, sem forro, bem ventilada.
E continuar pensando na trilha.
A favela e o umbu ainda são plantas que se salvam. As outras sofrem. O juazeiro igualmente se mantém firme.
A pena vinha de ver aquele emaranhado de árvores e arbustos desconhecidos, esturricados, torcidos, retratos de sofrimento.
Encerra-se o capítulo, abre-se um novo tempo.
Primeira chuva.
Mesmo passeio.
O milagre.
Os olhos perguntam, a mente pergunta, o coração indaga. De onde surgiu, com apenas uma água, tanto verde.
Tem que parar, saltar, ver com as mãos as plantas rasteiras voltando à vida, ao verde, folhas e brilho.
Aquela árvore desconhecida, basta enxergar bem de perto, já promete botões. Virão flores. As primeiras.
Brasil é nome de árvore. Não sei se da mesma espécie daquelas que resistem ao tempo inóspito e florescem logo à primeira chuva.
Não sei se daquelas que possuem a sabedoria natural de guardar o melhor de si como forma de resistir.
E renascer quando menos se espera.
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Música do dia
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.