Saudades dos olhos azuis

In ABCD, Artigo On

Por Guttemberg Guarabyra*

Meu avô tinha olhos azuis. Sempre que digo isso todos ao redor olham meu semblante misto de mexicano, baiano e indígena e dão um risinho maroto. Por duas razões: primeiro porque há entre os brasileiros uma paixão, um desbunde total por olhos azuis. E a frustração por não tê-los, mesmo que só por antepassado, provoca inevitáveis gestos de ressentimento. Em segundo lugar, porque, olhando para mim, não dá mesmo para acreditar — e, dessa maneira, o deboche é inevitável. Diria no entanto que há nessa zombaria também uma mistura. Além da incredulidade, existe ali igualmente uma ponta de inveja. O fato insofismável porém é que não herdei nenhuma das características nórdicas de meu avô, que tinha pele vermelha e cabelos claros além de olhos azuis. No entanto, herdei dele o pudor. Um pudor extremo.

Um exemplo: após ter me apresentado em algum show, escapulo antes que surja a fila de cumprimentos e autógrafos. Que me desculpem os fãs, mas tenho um indescritível pejo de ficar recebendo elogios. Como sugestão para remediar a situação, sempre sugiro ao empresário, sem jamais conseguir convencê-lo, é claro, que deveríamos, após os shows, pagar um belo jantar aos admiradores que porventura quisessem nos conhecer melhor. Aí sim. No ambiente descontraído de um bar ou restaurante, ergueríamos brindes e daríamos tapinhas nas costas, plenos de despudor. E eu, sorrindo descontraído, distribuiria autógrafos e até trocaria e-mails.

Mas a herança desse recato criou-me diversos embaraços vida afora. Um deles foi quando consegui meu primeiro emprego, aos catorze anos, como office-boy da indústria farmacêutica americana Sidney Ross. Depois de notificado da admissão, tive de submeter-me a um exame médico. O doutor, numa sala decorada com móveis antigos, no centro da cidade do Rio de Janeiro, me fazia perguntas cujas respostas ia anotando numa ficha. Ao me mandar tirar a roupa, no entanto, um raio fulminou-me, reduzindo-me à imobilidade. Transformei-me numa rocha muda e dura.

Enquanto permanecia estático olhando para o teto, o médico tirava os óculos e lentamente os pousava sobre a mesa. Descansou a caneta. Encarou-me de testa franzida e repetiu a ordem de maneira pausada porém áspera e firme. Feito um autômato teleguiado, obedeci. Envergonhadíssimo, baixei as calças, sentindo-me ferido no âmago de minha decência. “Tussa!”, ordenou, fixando o olhar em minhas partes pudendas. “Tudo normal aí?” Balancei a cabeça para indicar que sim. Finalmente, mandou que me vestisse.

Coloquei a roupa e retornei ao estado de rocha dura e muda. Acho até que foi em virtude de meu completo mutismo e apatia, que resolveu dispensar-me sem concluir todos os exames. Aliviado, abri a porta e arrisquei um olhar furtivo em direção à mesa em que estava o doutor. Havia posto novamente os óculos, assinava uma ficha — e ria de sacudir. Fiquei revoltado, mas nada disse e fui embora. O sujeito envergonhado é um débil. Nem imaginem o quanto me senti imensamente frágil e idiota naquela hora.

Vovô Vicente, de quem não recebi o legado dos olhos azuis mas herdei o imenso pudor, embarcou num navio, num cais das Alagoas, aos quinze anos e passou toda sua vida no mar. Mesmo aos 80 anos ainda conservava a força e vitalidade de um marinheiro. Até meus 9, 10 anos, ele ainda me suspendia no ar com um braço só. Era um prazer que reservava quase que exclusivamente para mim, seu neto predileto. Com os outros, se era solicitado a executar a brincadeira, atendia uma ou duas vezes. Comigo era incansável.

Quando o câncer o acometeu, escondeu-se na casa de um tio, em outro bairro, e proibiu terminantemente que deixassem vê-lo. Ah, aí está o pudor. Vexava-o ser visto naquele estado. Apenas dois de meus tios podiam visitá-lo. Um dia, por descuido, abriram a porta do quarto justo quando me encontrava na sala ao lado. Pela primeira e última vez desde que a doença o apanhara, nos avistamos. Os sete meses de câncer o haviam convertido num esqueleto de pijama. Senti uma imensa vergonha por vê-lo. E percebi que sofreu profundamente, pelo mesmo motivo. Foi ali que descobri, num átimo — pois logo correram a fechar a porta — de onde vinha meu pudor.

Toda vez que digo que meu avô tinha olhos azuis, lá vêm os risinhos marotos. Mas eu não ligo. Não ligo porque, quando lembro dele, estou, por dentro, absorto, olhando através de seus olhos da cor do mar e profundamente brilhantes. Digo até que só o temor reservado de ofender os autores dos risos invejosos é que me impede de declarar firmemente essa recôndita realidade: eu tenho olhos azuis, sim. Eu os possuo a cada vez que o vejo atravessando o Báltico, lutando contra as ondas do Mar do Japão, admirando as ilhas indonésias. Eu tenho os olhos profundamente azuis de meu avô a cada vez que o imagino em suas travessias atlânticas, a cada aportamento na Europa, na Ásia, na Oceania. Faz parte de minha herança — da mesma forma que percebi de onde vinha minha timidez ao sentir vergonha um dia no decurso de sua própria vergonha — ter a faculdade de enxergar através de seus olhos. E nessas horas, e apenas nessas horas, não tenho pejo nenhum por me sentir acima dos demais seres humanos. Nessas horas, só existe, só enxergo, só levo em conta que, ainda que não possam ser vistos, possuo sim legítimos e profundos olhos azuis. Além desse sentimento, também legado por ele, que é esta saudade maior que os oceanos.

Música do dia

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
  • O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
  • Esta crônica, por exemplo, “Saudades dos olhos azuis”, está nas páginas 230, 204 e 205 dessa publicação imperdível, do mesmo nome.
  • Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas, em conclusão, o Diário Popular.

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