O DEUS QUE PROTEGE OS BÊBADOS

In ABCD, Artigo On
- Updated

Guttemberg Guarabyra

Arranjou-me papel e caneta, e escrevi o poema de uma só levada, sem voltar atrás nenhuma palavra, e assim nasceu Espanhola, nossa parceria de sucesso

A tarefa de despedir o último freguês e fechar o estabelecimento é um drama pelo qual já passaram cem entre cem donos de bar.

E quanto mais amigo for o cliente, mais problemática a missão.

A depender do tipo de personalidade, caráter, feitio moral ou até mesmo físico de cada personagem a ser convidado a tomar o rumo do lar, a coisa muda de figura.

O objetivo, do lado do dono, é sempre chegar à calçada com risos e tapinhas nas costas do retardatário, e expedi-lo no mais alto astral.

Do lado do cliente, o ideal é manter aceso na mente, custe o que custar, aquele clarão de lucidez em que habita o deus que protege os bêbados.

Seguindo a regra, vigiando-se para não confundir a despedida com demissão e daí surgir algum desentendimento, o retorno ao lar está assegurado. A não ser que, a partir dessa etapa, surjam imprevistos

Certa noite gelada em São Paulo, ‘ la puerta se cerró detrás de mi’, último cliente, e me vi solitário numa madrugada de ruas vazias, suportando a sensação térmica de zero grau e morando a uns dez quarteirões de distância, numa época em que ainda não existia celular pra chamar um táxi.

A minha cabeça enevoada insistia em exibir a cena que assistira à tarde na televisão, em que socorristas acudiam moradores de rua prestes a congelar. Já me via nos telejornais no dia seguinte, passando pela mesma situação.

Pus-me a caminhar. Era a única alternativa.

Por sorte, aquela luz do deus dos bêbados ainda estava acesa, e iluminou-me a lembrança de que, no meio do percurso até minha cama quentinha, bastando fazer um pequeno desvio, morava Flávio Venturini, que tocava comigo.

A luz divina sugeriu-me fazer um pit stop na casa dele, e cumprir a caminhada em duas etapas.

Deu tão certo que, depois de acolher-me e enquanto restaurava minhas forças para continuar a jornada, Flávio tocou-me uma canção que havia acabado de compor. Encantado com a melodia, ainda que atordoado pelo álcool, pedi permissão para compor a letra.

Arranjou-me papel e caneta, e escrevi o poema de uma só levada, sem voltar atrás nenhuma palavra, e assim nasceu Espanhola, nossa parceria de sucesso.

Depois de ter finalmente aportado em casa e dormido profundamente, acordei na manhã seguinte com um telefonema do parceiro dizendo que a letra havia se encaixado perfeitamente à melodia, e a música tinha ficado excelente.

Só que eu não lembrava de ter passado na casa dele.

Muito menos de ter composto o poema.

Sobre outro bar e outro último freguês, contaram-me outra história.

Era domingo de carnaval. O bar fecharia naquele dia e só reabriria na Quarta-feira de Cinzas.

Para sorte do dono do estabelecimento, o mais problemático e habitual último freguês sumira da festa mais cedo por livre e espontânea vontade, de modo que o fechamento ocorreu de forma tranquila.

Porém, logo cedo no dia seguinte, segunda de carnaval, o homem ligou para o dono querendo saber a que horas abriria o bar naquele dia. E já estava bêbado.

Velho conhecedor do amigo, sabia que, naquele estado etílico, de nada adiantaria explicar que só abriria na quarta. Sem perda de tempo, desligou o telefone.

Na terça, mais chumbado ainda, telefonou novamente para acusá-lo de não o ter autorizado a beber. Às gargalhadas com o devaneio, garantiu-lhe que jamais se oporia a que bebesse. Que estava autorizado. Que conversa mais doida.

Na quarta-feira finalmente abriu o bar e lá dentro estava o amigo dormindo a sono solto, cercado de garrafas, celular jogado ao chão.

Não havia saído mais cedo no último dia em que o bar ficara aberto, e sim apagado no banheiro e passado o Carnaval trancafiado no boteco.

Ao ser advertido depois de acordado, ainda justificaria o consumo dizendo que o próprio dono o havia autorizado a beber.

—–

Música do dia

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.

You may also read!

Projeto da deputada Carla Morando que incentiva uso da energia solar aprovado na Comissão de Infraestrutura da Alesp

Projeto da deputada estadual Carla Morando, que autoriza o Poder Executivo a instituir a Política de Incentivo à Produção

Read More...

Novo CRAS Promissão já atende a cerca de 8 mil famílias

Centro de Referência em Assistência Social vai desafogar o CRAS Naval (antigo CRAS Leste) e facilitar a vida dos

Read More...

BRT e Consórcio do ABCD criarão grupo de trabalho para acompanhar obras

Prefeitos pedem, em primeiro lugar, integração com linhas locais de ônibus A equipe NEXT Mobilidade, responsável pela implementação do BRT

Read More...

Leave a reply:

Your email address will not be published.

Mobile Sliding Menu