IRMÃOS DE SEMPRE

In ABCD, Artigo On

Guttemberg Guarabyra

“Com a internet, nos reaproximamos e descobrimos que ainda continuávamos os mesmos irmãos de sempre”

Acordamos.

O boi me olhava tão de perto que pude ver os insetos minúsculos esvoaçando ao redor do rosto monstruoso.

Acho que poucos têm ideia do tamanho da cabeça de um boi. No cara a cara é assustador.

Levantei-me num salto e Gilvando da mesma forma, já reclamando do carreiro, pois em vez de nos acordar para livrarmos a ponte a fim de permitir a passagem do carro de boi que conduzia, optou por nos acordar no susto, intimidados pelos olhos gigantes dos cabeçudos.

Cinco e meia da manhã. Riacho de Santana, sertão da Bahia.

Fazia dois dias que havíamos deixado Bom Jesus da Lapa, de carona, e desembarcamos em Riacho de Santana com a roupa do corpo e trazendo como bagagem apenas um violão.

Gi, cuja família era originária do lugar, garantiu que teríamos hospedagem gratuita na casa de um tio alfaiate. Dito e feito.

Num tempo em que não havia como o visitante avisar com antecedência que estava chegando para uma temporada de relembranças, a recepção, ainda assim, foi absolutamente perfeita.

A família Fraga, reconhecida pela extravagante inteligência e comportamento de amalucada beleza, mais uma vez surpreendia. O tio fazia da alfaiataria, fincada numa colina de onde se descortinava a cidade, também um estúdio de emissão de música para a comunidade através de alto-falantes postados nas janelas.

Ao recepcionar o sobrinho, confesso que não vi muita receptibilidade. Mas ao divisar o instrumento envolto na capa de lona empunhado pelo amigo, mudou o semblante para boas-vindas. Se é da música, aprochegue-se.

Nossa missão, além do compromisso particular do amigo Gilvando em rever familiares, era unicamente cumprir serenatas.

As luzes, melhor dizendo, a energia elétrica do município, produzida por geradores a diesel, era interrompida impreterivelmente às onze da noite. A partir desse horário reinava o silêncio e as sombras. Palco ideal para seresteiros.

Descíamos da colina na madrugada, escolhíamos uma praça e iniciávamos a cantoria.

Bastou uma cantoria para que nos tornássemos atração.

Na tarde seguinte, após dormimos longamente para nos recuperar da madrugada musical, felizmente fomos recebidos nos bares, nas ruas, com parabenizações e até pedidos de músicas prediletas para o próximo recital, composto de sucessos variados, mas principalmente do repertório de Waldick Soriano, nascido na vizinha Caetité.

Ficamos conhecendo uma dupla de amigas. Pediram para nos acompanhar nas primeiras horas do concerto. Em seguida teriam que regressar aos respectivos lares.

Aquilo nos pareceu mais um pedido de encontro, e nos entusiasmamos.

Geralmente tomávamos alguma coisa antes e durante o show noturno, mas naquela sessão preparatória, devido ao nervosismo causado pela perspectiva da plateia interessante, exageramos.

O fato é que as meninas compareceram com ótimas segundas intenções na praça absolutamente em trevas da catedral, e o clima romântico aos poucos dominou mansamente o breu depois de muita prosa e pouco canto.

Minha timidez impediu-me de ultrapassar o limite da prosa com minha parceira. Porém, pela movimentação divisada com dificuldade através da escuridão, dava para notar que as coisas rolavam de modo diferente nos fundos da igreja, onde se acomodou o outro par.

Porém a bebida cantou mais alto.

E o desastre aconteceu. Ouvimos os passos pesados de Gi afastando-se para algum canto e o som de quem colocava para fora todo o álcool consumido antes.

Interrompemos a serenata. No estado em que nos encontrávamos, resolvemos não atrapalhar o descanso do tio e acabamos pregando no sono em cima da pontezinha de madeira sobre o riacho. Seria aquele o riacho de Santana? E acordamos sob os focinhos da parelha de bois.

Por muitos anos nos divertimos comentando aquela noite.

Eu migrei para o Sul e fiz do violão a vida.

Gi continuou na velha Lapa, escrevendo poemas e alegrando a cidade. Com a internet, nos reaproximamos e descobrimos que ainda continuávamos os mesmos irmãos de sempre.

Anteontem, fui avisado de que tomou a carona definitiva, pegou da viola e partiu para cumprir serenatas lá em cima.

Vai acordar eternamente na presença de alguma plateia bonita em vez dos olhos assustadores nas cabeças monstruosas, embora tranquilas, da parelha de bois na manhã sobre a ponte do Riacho de Santana.

“Não sei se minto

ou deixo a verdade pra daqui a pouco”

“Embrulho as palavras para presentear a boca”

Gilvando Otávio Bastos Fraga

Música do dia

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.

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