Joaquim Alessi
“Para as pessoas que não sabem muito bem o que é uma ditadura, é isso aí. A ditadura é capaz de fazer uma baía de Guanabara no interior do Brasil e negar a informação para o povo; o povo inteiro não sabe que eles estão fazendo isso, entende? A partir daí, calcula o que pode fazer o governo autoritário.”
Com essa declaração, Guarabyra contou a história da construção de “Sobradinho” (“o sertão vai virar mar, dá no coração, o medo (de) que algum dia o mar também vire sertão) pela dupla Sá&Guarabyra e, mais do que isso, mostrou que a Arte está sempre alerta, em resistência às práticas contrárias à liberdade.
A revelação deu-se, em primeiro lugar, em conversa com José Gustavo e Odilon Lima no canal Papos & Beats, do Youtube, no domingo, 30 de agosto.
Origem
Guarabyra lembrou, portanto, que nasceu em Barra do Rio Grande, na junção do Rio São Francisco com o Rio Grande. Depois foi para Xique-Xique, onde morou também por muito tempo, no Vale do São Francisco, e depois Bom Jesus da Lapa, onde fez o ginásio etc.
Além disso, contou da vinda para o Sul, das viagens – “eu e o Sá éramos estradeiros” -, das buscas por histórias.
Em conclusão, esclareceu: “Numa dessas viagens, chegamos a Bom Jesus da Lapa, onde meu pai (o pastor batista Guttemberg Nery Guarabyra) ainda morava, e o meu pai me falou que tinha tido notícias de que lá para baixo (na verdade, para cima do mapa, região de Juazeiro, Paulo Afonso) estavam testemunhando caminhões de tamanhos assim que os sertanejos jamais tinham visto, com pneus, rodas de altura de três quatro homens, pneus enormes, e eles estavam espantados em saber que obra gigantesca era aquela lá.”
E, na mesma linha, prosseguiu: “Nós nos interessamos, fomos pesquisar, e descobrimos que o governo da ditadura Geisel estava fazendo um lago no sertão da Bahia que era maior que a Baía de Guanabara, e a população não sabia”.
Em conclusão, destacou: “Então nós descobrimos, por acaso, que eles estavam construindo esse lago, que iria inundar cinco cidades, expulsar as populações dessas cidades – como realmente aconteceu, no final; as populações foram expulsas, os pescadores e as famílias dos pescadores não tiveram mais como sobreviver, a prostituição no Nordeste aumentou demais, porque essas famílias ficaram completamente à mercê sorte, foi uma tragédia total, e tudo isso escondido, tudo isso sem o povo saber, e nós resolvemos, então, fazer a música contando que essa barragem e esse lago estavam sendo construídos”.
Censura
Indagado, em suma, sobre a possibilidade de a música ser censurada, o que era comum à época, Guarabyra tem uma explicação no mínimo curiosa: “Olha, a censura naquele tempo era tão grande, que nem mesmo os censores sabiam que a barragem estava sendo construída. Porque, se eles soubessem disso, teriam proibido a música”.
Em conclusão, disse: “Então, quando a gente fez a música, e a música explodiu, foi um sucesso absoluto, na verdade a gente denunciou aquela construção arbitrária. O resultado é que, a partir daí, dessa explosão, desse sucesso, o governo não teve mais como esconder a obra, e então resolveu dizer que estava fazendo sim, e fez um monte de clips de propaganda, filmes para a televisão e tudo, falando que a obra era magistral, e realmente era uma obra interessante para a energia do Nordeste, mas, evidentemente, tudo tem que ser feito de uma maneira democrática, com debates, ouvindo especialistas para saber a melhor maneira de construir, para preservar tanto o meio ambiente quanto as pessoas, a vida delas, e não houve nada disso. Não estamos dizendo que a barragem seria uma coisa ruim, em termos de progresso, pode não ser, mas a maneira de fazer foi escandalosamente desumana”.
Segue a letra:
Sobradinho
Sá&Guarabyra
O homem chega, já desfaz a natureza
Tira gente, põe represa, diz que tudo vai mudar
O São Francisco lá pra cima da Bahia
Diz que dia menos dia vai subir bem devagar
E passo a passo vai cumprindo a profecia do beato que dizia que o Sertão ia alagar
O sertão vai virar mar, dá no coração
O medo que algum dia o mar também vire sertão
Adeus Remanso, Casa Nova, Sento-Sé
Adeus Pilão Arcado vem o rio te engolir
Debaixo d’água lá se vai a vida inteira
Por cima da cachoeira o gaiola vai subir
Vai ter barragem no salto do Sobradinho
E o povo vai-se embora com medo de se afogar.
Remanso, Casa Nova, Sento-Sé
Pilão Arcado, Sobradinho
Adeus, Adeus