Eternidade

In ABCD, Artigo On
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Por Guttemberg Guarabyra*

Contemplava os olhos de Beatriz, a boca de Beatriz, sondava de passagem os seios de Beatriz e novamente lhe contemplava os olhos. Sabia que falava sem parar e que ela o ouvia atentamente. Mas, por vezes, duvidava que ainda houvesse sentido no que dizia. Tinha ciência de que havia se atrasado em excesso. Que tinha perdido o tempo certo de dizer que a amava, que a queria. A sensação de que era tarde demais o alcançara, com maior intensidade ainda, assim que deu o primeiro passo sobre a calçada do restaurante em que iriam se encontrar depois de tantos anos. Estava atrasado em relação ao que não havia dito na hora própria, mas havia chegado cedo ao encontro para aguardar por ela. Era um lugar conhecido, que frequentava habitualmente, e por muitas vezes com Beatriz. Não quis aguardar no bar, como costumava fazer ao esperar algum convidado. Preferiu dirigir-se imediatamente à mesa preferida, antes que alguém a ocupasse.

          Pediu um uísque. Pretendia que o efeito da bebida o deixasse menos nervoso, embora tivesse receio de que a consequência poderia ser pior para o encontro. O ar-condicionado estava muito forte. Pediu que diminuíssem a intensidade. Beatriz aprovaria. Certa vez, naquela mesma mesa, ela lhe pedira emprestado o paletó, que havia deixado no espaldar da cadeira, para se proteger da corrente gélida do aparelho. A lembrança imediatamente fez com que seus olhos procurassem pelo quadro. Beatriz tinha aprovado a pintura. Ele, nem tanto. Ela quis saber o motivo pelo qual não havia gostado. Respondera que a paisagem, a retratar montanhas e vento, nada lhe dizia.

– Ora, se você sentiu que a pintura inclui o vento, então o quadro lhe diz alguma coisa.

A observação de Beatriz deixou-o perplexo. Explicou:

– Não há nada nele que indique a brisa. Nem sequer uma folha voando. As vestes das personagens também não demonstram que existe vento. Não há cabelos esvoaçantes. Mas se você, assim mesmo, percebeu que há ali, naquela cena, um vento brando, uma aragem suave, é porque alguma coisa o tocou. Confesse. Sei disso porque o que me comove nesse quadro é exatamente a presença subjetiva dessa brisa…

Naquele momento, lembra-se como se fosse hoje, Beatriz fizera uma pausa misteriosa. Franziu as sobrancelhas, respirou fundo e acrescentou, de maneira profundamente enigmática:

– …E da eternidade.

          Agora, tantos anos depois, surpreendia-se redescobrindo o mesmo quadro na parede do restaurante. E, mais do que decifrá-lo novamente, tentava entender o que ela quisera revelar ao dizer que o quadro se compunha também de eternidade.

Talvez se referisse ao rio azul e sereno que, lá embaixo, no vale, corria em direção ao horizonte difuso. Num átimo, veio-lhe à cabeça a ideia de que talvez ela simplesmente estivesse se referindo a eles, àquele amor sempre esperado e nunca vindo. A suspeita convenceu-o mais ainda de que havia se atrasado. Havia esperado em demasia para atender ao chamado do amor.

          Súbito, entendeu que Beatriz sempre o houvera esperado. E esperara humildemente, sem jamais tê-lo constrangido com pedidos insistentes para que ficassem juntos. Tinha sido um idiota ao não entender o quanto seria importante para sua vida ter dado atenção a eles. Diante disso, arrependia-se mais do que nunca. Beatriz, com o tempo, vendo que a relação não progredia, foi se afastando. Separaram-se definitivamente quando ela se mudou para outra cidade.

          Não se lembra com certeza do momento em que finalmente tomou consciência do erro que cometido. Foi a partir dali que a saudade de Beatriz começou a golpeá-lo profundamente. Talvez tenha sido no mesmo instante em que um amigo casualmente o informou de que ela havia regressado. No início, o assunto não lhe chamou a atenção. No entanto, poucas semanas depois se viu perturbado, com a imagem de Beatriz invadindo-lhe diariamente os sonhos. Não demorou a conseguir seu novo número de telefone. Relutou em chamar. Quando finalmente tomou coragem, desligava assim que atendiam. 

No dia em que, ajudado por boas doses de uísque, deixou que a ligação durasse mais, tremeu ao escutá-la novamente.

          Ela, no entanto, atendeu-o com tanta frieza que, por pouco não desistiu do planejado convite para um encontro. Porém após alguns minutos em que recordaram velhos e bons momentos, propôs o convite. Para sua surpresa, foi prontamente aceito. Lembra ainda que desligou o aparelho e ficou andando pela sala em círculos perdido em recordações que o levavam de volta ao colégio da adolescência, onde a conhecera. Só despertou do devaneio quando ligaram do escritório onde o aguardavam para uma reunião.

          Divagava novamente agora, quando alguma coisa o chamou de volta à vida. Era Beatriz, que chegara sem ser notada e esperava de pé, observando-o com um sorriso nos lábios. Levantou-se num salto, totalmente embaraçado, enquanto ela abria uma gargalhada suave e alegre.

Depois de alguma formalidade e três ou quatro uísques, que Beatriz, antes uma abstêmia convicta, também sorveu com prazer, já estavam à vontade. Não tanto como nos velhos tempos, mas de uma maneira que já permitia um papo sem inibições. Foi assim que se viu falando sem parar enquanto os olhos, feito dois holofotes, varriam sem parar a boca e os seios de Beatriz. Só se calou quando viu que ela olhava fixamente numa direção, com as sobrancelhas franzidas, repetindo o velho hábito. Beatriz observava novamente o mesmo quadro!

– Você se lembra? – ela indagou, ofegante, emocionada.

– Claro que sim.

          Aí se deu o milagre que mudou tudo. Beatriz trouxe-o para junto de si e abraçou-o mansamente, enquanto falava baixinho:

– Tem uma coisa que eu sempre quis dizer. Você, em minha vida, é como a brisa misteriosa naquele quadro. Sempre pensei nisso. Sabia que você é minha eternidade?

Não digo que foram felizes para sempre porque não sei como se desenrolou a partir dali aquele romance incomum. Mas uma coisa ao menos deduzi desta história. Entendi que, enquanto se está vivo, sonho algum é desprezível e nenhum amor é impossível. No quadro de cada destino, não importa o quão cedo ou tarde as coisas aconteçam, sempre pode acontecer, ainda que de forma imperceptível, o bem, o propósito daquilo que nunca morre e que sempre esteve ali.  O silencioso, incessante e divino mistério da eternidade.

Música do dia

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
  • O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
  • Esta crônica, por exemplo, “Eternidade” , está nas páginas 101, 102, 103 e 104 dessa publicação imperdível, do mesmo nome.
  • Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas, em conclusão, o Diário Popular.

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