Confete, confesso que chorei

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Guttemberg Guarabyra

Antigamente, os primeiros vapores que navegavam através do Rio São Francisco cumpriam apenas a missão de transportar carga e passageiros que se deslocavam entre as cidades ribeirinhas, onde residiam. O turista começou a utilizar esse meio de transporte já em meados da década de 1960. A chegada desse novo tipo de passageiro estimulou várias mudanças a bordo. Para mim, a principal delas foi o estabelecimento de uma cobertura no terraço da embarcação em que antes havia apenas o passadiço e o camarote do comandante. Dali, podia-se observar melhor a paisagem à volta e receber em cheio a brisa fresca, que, por efeito do calor causticante, representava uma verdadeira bênção para o viajante.

Acompanhado do compadre Augusto Pinho Pinheiro — a quem havia convidado para conhecer o sertão —, tinha saído do Rio de Janeiro com um roteiro de viagem bem detalhado e meticulosamente cronometrado. Nós o tínhamos dividido em três etapas. Na primeira permaneceríamos seis dias em Bom Jesus da Lapa, na Bahia, onde fui criado e onde ainda moravam meus pais e alguns irmãos. A segunda se resumiria nos cinco dias subindo o São Francisco até a cidade de Pirapora, em Minas Gerais. A terceira e última etapa era igualmente agradável, mas certamente se tratava também da que mais ansiávamos, já que passar a temporada de Carnaval em Pirapora, cercados de suas célebres morenas da cor do jambo, era desejo de dez em cada dez moçoilos solteiros do sertão.

No terraço do vapor, tomando uma cervejinha e vendo as nuvens de jacus se apoderando das copas das grandes árvores, traçávamos planos, antegozávamos os bailes, as conquistas e brindávamos às compadradas. Nisso, inesperadamente observamos que, no cimo de uma das árvores, cuja copa se projetava por cima do rio, alguns jacus iniciaram uma peleja brutal. Naquele momento, navegávamos bem próximos à margem, de modo que pudemos observar claramente as agressões. Eu, especialmente, lembro-me de ter visto uma pena das grandes, arrancada cruelmente de uma das aves, caindo devagar ao sabor do vento. Acompanhei-a com o olhar até que, por fim, pousou mansamente sobre a correnteza. E sumiu.

Conforme o plano cuidadosamente elaborado, aportamos em Pirapora na noite do sábado de Carnaval. Cuidamos de desembarcar o mais rápido possível e nos dirigirmos imediatamente ao hotel, torcendo para que o telegrama que havíamos enviado para nosso amigo Quintininho, solicitando-lhe que providenciasse as reservas, houvesse chegado a tempo. Encontramos tudo nos conformes. Depois de um banho revigorante, aprontamo-nos e fomos direto para o clube a fim de, sem demora, cair na farra. Chegando lá meu velho amigo Duzinho estava à nossa espera, conforme o combinado, com os convites. Tudo perfeito. A banda entoava marchinhas a toda. O salão estava repleto, e o mulherio, fantástico. Muito tímido, antes de me atirar ao baile passei no bar e engoli duas boas talagadas de uísque. Daí, com um grande salto, mergulhei de vez no Carnaval.

Logo que meus pés se assentaram no chão — após o primeiro salto! —, vi que algo havia saído errado. Ouvi um estalido e senti uma dor insuportável nas costas. Não conseguia mais me mover. Fui levado de maca para o hotel e não deixei mais o leito até o fim do Carnaval, que passei, inteiro, olhando para o teto do quarto. Na madrugada da terça-feira gorda, Augusto, depois do último baile, foi ao quarto visitar-me. O compadre, de muito bom coração, bêbado, balbuciou um não sei se irônico ou encorajador “foi hoje só, amanhã não tem mais”. Em seguida fitou-me tristemente e deixou correr duas lágrimas. Nisso, despencou mansamente de seus cabelos um confete. Veio flutuando em direção ao chão e instantaneamente associei sua queda à pena que vira pousar na correnteza do rio. Confete, confesso que também chorei.

Música do dia:

  • ESTREIA DE NOVO FORMATO: A publicação desta terça de Carnaval marca a estreia de um novo formato de publicações de Guarabyra no portal. A partir de agora, todas as segundas e sextas teremos a edição de uma crônica publicada entre inéditas e constantes do livro Teatro dos Esquecidos. Mas, começa excepcionalmente nesta terça, por ser Carnaval, e a crônica ter tudo a ver com o momento.
  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas o Diário Popular.

 

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