A ortografia e o autógrafo

In ABCD, Artigo On

Por Guttemberg Guarabyra*

O problema de se dar mal numa sessão de autógrafos, geralmente, provém das diversas formas de grafar um mesmo nome. Há quem goste de grafias estranhas. O poeta Gonçalves Crespo até escreveu: “São mais lindos que as Estrelas/Seus erros de ortografia”. Mas, no caso referia-se apenas a erros cometidos pela amada. E, como sabemos, a paixão é cega — e não vê erros gramaticais.

Um dos nomes que mais me impressiona pela variedade de formas em que já o vi grafado é Gisele. Ou Gizele, ou Giselle, ou Gizelle, ou Gizeli, ou Gizelli, ou Giselli, ou Gizely, ou Gizelly, ou — incrível — Gyzelly. Imaginem, por esse exemplo, os erros de grafia que você pode cometer quando é solicitado a dar um autógrafo.

Atendendo a uma fila de fãs, você não está muito preocupado com o que está escrevendo. E vai sapecando beijinhos e assinaturas. A questão, porém, é que um nome é como uma marca, e ninguém gosta de ver o seu grafado errado. Maria, por exemplo, seria para tirar de letra — sem trocadilho —, mas lá vem a observação: “O meu é com ípsilon…”. Depois do sorriso amarelo, o negócio é escrever tudo de novo. Mesmo que a pessoa diga que não precisa, que basta riscar por cima a letra certa, não o faça. Aquele autógrafo nunca parecerá dirigido a ela, e ela jamais o exibirá com orgulho.

O autógrafo ideal tem de transmitir, em pouquíssimas palavras, uma certa intimidade. “Ao amigo…” é uma solução razoável, porém demasiado comum. É recomendável dar uma variada, como por exemplo: “Ao companheiro…” — que calha muito bem, principalmente na Bahia, pois tem um ar soberbo, vira uma espécie de discurso, e o baiano é chegado a uma oratória. Desconfio que isso aconteça desde os tempos em que Vladimir Palmeira revolucionou o palavreado político liderando as passeatas estudantis do alto dos postes berrando sempre: “Companheiro!”. A partir dali o vocábulo tomou uma eloquência especial, que agrada enormemente aos políticos discursivos até os dias de hoje.

A solução dos trocadilhos também pode ser boa. Porém, não vale exagerar: “Marta: você é bonita mesmo morta” seria de doer até para quem já está realmente defunto. Portanto, calma. Seja criativo… Mas não em demasia.

Por mais que se tome cuidado, no entanto, sempre surgem os incidentes de noite de autógrafos. Alguns tristes e graves, que, se não contornados com tato, podem resultar em traumas.

Com crianças, então, a coisa é mais complicada ainda, pois nem sempre têm noção da grafia correta dos nomes. Há algumas que nem sequer sabem pronunciá-los, e nem sempre estão acompanhadas de adultos que possam informar que nome estão exprimindo. E, se você não resolver o assunto rapidamente, logo principia a cara de choro. Especialmente devido às gozações das outras que estão presentes, aguardando a vez. Vocês não sabem como podem ser inocentemente cruéis esses anjinhos.

Certa vez, após uma apresentação numa cidade pequena, no interior de São Paulo, enfrentava uma fila para autógrafos em que predominavam crianças, quando surgiu uma menina linda, dos seus cinco, seis anos. Com todo o desvelo, perguntei-lhe o nome. “Ê/Ôrrrii”, respondeu. Claro que não entendi. Normal, principalmente, porque as outras faziam uma algazarra ensurdecedora. Tentei novamente, e a resposta foi a mesma. Senti que o problema estava nos erres enrolados, típicos da fala do interior paulista. Agachei-me, apurei os ouvidos e pedi, gentilmente, que repetisse: “Ê/Ôrrrii!” Iniciaram as risadas cruéis, vindas da fila. A pequena Ê/Ôriiiii começou a ficar nervosa. Acalmei-a com um afago, enquanto dirigia um olhar de censura às que estavam rindo. Algumas taparam as bocas com as mãozinhas, outras se esconderam atrás das maiores, mas as gargalhadas estouravam ainda mais intensas.

Então, quem começou a ficar nervoso fui eu. Procurei o auxílio de um adulto. Nenhum disponível. Insisti na pergunta e, de novo, não consegui entender o atrapalhado dos erres paulistas. Suando frio, percebi que a menina começava a chorar. Fiquei desesperado.

Felizmente, uma colega maior, que estava afastada, ao perceber o que acontecia com a amiga, veio correndo em socorro e nos salvou: — Eire! — esclareceu como se me xingasse. Só faltou acrescentar: “seu incompetente!”. Foi um alívio. Enxuguei o suor, escrevi o nome com uma dedicatória cheia de beijos, carinho, amizade e tudo o que tinha de mais adequado para a situação. E beijei-a satisfeito. Fiquei ainda mais contente quando ela me beijou de volta já com a carinha alegre, apresentando um imenso sorriso. Respirei tranquilizado. Estávamos ambos salvos dos consultórios dos psicanalistas. Mas juro que tremi quando ela conferiu o autógrafo. Só faltava vê-la recomeçar a chorar e, novamente, ser espinafrado pela colega: “Com H, seu idiota!”. Aí, juro que quem abriria o choro seria eu.

Música do dia:

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
  • O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
  • Esta crônica, por exemplo, “A ortografia e autógrafo”, está nas páginas 33, 34 e 35 dessa publicação imperdível.
  • Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas o Diário Popular.

 

 

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