A inominável cobra-cega de Pinheiros

In ABCD, Artigo On

Guttemberg Guarabyra*

Estamos tentando, Miestre Julio e eu, comandar um plano absurdo na tentativa de rever a cobra-cega de cerca de metro e meio de comprimento que mora no subsolo do bairro paulistano de Pinheiros. Nós a vimos passar um dia por entre as tubulações úmidas, dentro do buraco enorme que Julio havia aberto no porão de um prédio para achar um vazamento. Tinha ido levar um lanche para o uruguaio. Desci ao porão escuro, cheirando a mofo. Mal cheguei, ele gritou do interior da caverna, de cujas paredes encharcadas pingavam gotas d’água e por onde se viam as entranhas da rua, feitas de canos, manilhas e cabos: — “Vem ver!!”.

Gritou de um jeito tão espavorido que não perdi tempo, larguei o lanche num degrau da escada e meti a cabeça pela abertura do chão. Cabeça a cabeça com o Miestre, testemunhei o animal viscoso e (impressionante!) desprovido de olhos passar direto como um trem que atravessa o espaço entre dois túneis muito próximos, quando acontece de uma parte do comboio desfilar pelo intervalo entre eles e logo começar a desaparecer no interior do túnel seguinte. Depois da visão, nos mantivemos paralisados por um bom tempo, imaginando se o que tínhamos presenciado havia realmente acontecido. Passaram-se alguns dias, a criatura emergiu no quintal vizinho, ainda na reparação dos estragos do vazamento que atingira também aquela parte do subsolo. No entanto, diferentemente da primeira vez — quando a vimos no escuro com o auxílio de uma pequena lanterna —, desta feita ela apareceu e desapareceu de nossas vistas em plena luz do dia. Vimos perfeitamente seu corpo esguio.

Isso aconteceu há muitos anos. Pelo menos uns 30. Por uns tempos, cheguei a duvidar de que realmente houvesse acontecido. Certamente, não era um tipo de serpente. E, passados tantos anos, comecei a questionar se teria aquele tamanho todo. A imagem do bicho feio e asqueroso, porém fascinante, sempre me surge quando estou sozinho, relembrando fatos vagos. E sempre que me encontro com a única testemunha que além de mim presenciou a aparição, esqueço de confirmar se aquilo de fato ocorreu. Dessa forma o enigma permanecia sem ser esclarecido. Vinha evitando o assunto temendo que alguém me tachasse de doido. Semana passada, porém, num churrasco, antes que Miestre Julio desaparecesse de minhas vistas tal qual a cobra maluca, lembrei-me de perguntar-lhe.

Fiquei ao mesmo tempo embasbacado e aliviado quando sustentou que tudo aquilo existira sim, e que ele nunca tinha comentado novamente o caso justamente porque não se lembrava de quem estava junto com ele no momento da aparição. Naturalmente, também tinha medo de ser acusado de louco e mentiroso quando se referisse ao inominável ser. Aliás, quanto ao nome, no sertão existe uma cobra chamada corre-campo. Mas aquela deveria ser designada no mínimo como corre-lama ou cobra-metrô. Por falar nisso, pergunto-me de vez em quando se durante a construção do metropolitano os operários não deram de cara com parentes de nossa conhecida. Se aconteceu, favor informar. Vai ver que vale a pena analisar o espécime e, assim, com mais esse depoimento, quem sabe algum estudioso se apresente para examiná­-lo.

O tal prédio cujo vazamento revelou a incrível moradora das profundezas de Pinheiros está vazio e abandonado. É mais um desses mistérios insondáveis que são os edifícios vazios e abandonados de São Paulo. Nessa condição, estamos pensando, Miestre Julio e eu, em pedir permissão para reabrir aquele buraco no porão. Especialista na matéria, o uruguaio garante que tudo estará mais ou menos como àquela época. E que, se o animal extraordinário não tiver sido apenas um único indivíduo adaptado àquelas condições especiais de sobrevivência, será grande a possibilidade de depararmos com algum de seus descendentes. Nas próximas semanas debateremos o projeto. Tudo está dependendo de a gente marcar outro encontro. Se até lá a curiosidade tiver aumentado, poderemos até deslanchar o plano antes, embora eu tenha medo de que, ao revelar o hábitat, acabemos atraindo a atenção geral e, com isso, provocarmos sua destruição, pois que, apesar do aspecto asqueroso, a cobra sem olhos enfurnada no subsolo de Pinheiros é uma alma inocente que merece viver sossegada.

Sendo assim, vou propor que, se chegarmos à conclusão de que o melhor para o bicho é deixá-lo em paz, esqueçamos a história e nunca mais falemos sobre a revelação distante e enigmática. De todo modo, naquelas horas em que a gente mergulha nas profundezas de nós mesmos, atravessando túneis no terreno fértil de sonhos subterrâneos e intrigantes, continuarei me vendo, nervoso, atraído ao porão pelo chamado aflito do Miestre Julio. E, eternamente assombrado, assistirei novamente meu pensamento a trazer de volta a passagem do ser obscuro e estranhamente simpático deslizando pelas estranhas do chão de Pinheiros.

Música do dia:

*Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras. Esta crônica, “A inominável cobra-cega de Pinheiros”, está nas páginas 25, 26 e 27 dessa publicação imperdível. Músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu da mesma forma O Outro Lado do Mundo, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas o Diário Popular.

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