A esperança é a última que não bebe

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Guttemberg Guarabyra

Com o tempo, um estranho e recôndito dilema surgiu na intimidade dos casais. Nem todas as mulheres se tornaram amigas. Algumas se sentiram rejeitadas

A oferta de um substancial aumento de salário, caso aceitassem ser transferidos, era tentadora.

A empresa chegara à conclusão de que enviar uma equipe completa e bem treinada para abrir o novo departamento na filial seria mais vantajoso do que formar e treinar uma equipe nova na outra cidade.

O problema é que todos, na equipe de sete rapazes, eram casados. Apenas dois não tinham filhos.

Pelo cronograma, partiriam em quinze dias, teriam um mês de hotel pago pela companhia, enquanto tratavam de organizar o departamento, e ao mesmo tempo procurar casa ou apartamento para acomodar a família.

Depois de muita conversa, ameaças de esposas, crianças desconsoladas com a futura mudança de colégio, o salário falou mais alto e todos concordaram em se mudar.

A vida no hotel foi mais feliz do que esperavam. A turma que se conhecia mais pela relação no trabalho do que na rotina diária formou um clã mais unido do que poderiam imaginar.

Nos fins de semana viajavam para visitar a família.

O bom astral dos maridos, quando as esposas os reviam, ajudou a quebrar os receios que ainda perduravam. Tudo ia dar certo.

Um dos amigos encontrou uma excelente casa para alugar. Todos foram conhecê-la. Adoraram a casa e o bairro. Percorrendo as proximidades localizaram mais alguns imóveis com anúncios de aluguel.

Resolveram que todos morariam no mesmo bairro e seriam cada vez mais unidos. E saíram para comemorar.

As famílias foram chegando aos poucos.

As mulheres não se conheciam e foram sendo apresentadas. Discutiam a melhor solução para a transferência escolar das crianças. Trocaram receitas, combinaram almoços domingueiros, churrascos.

Com o tempo, um estranho e recôndito dilema surgiu na intimidade dos casais. Nem todas as mulheres se tornaram amigas. Algumas se sentiram rejeitadas. E, ainda mais grave, uma delas teria denunciado ao companheiro que um dos amigos a olhava de uma maneira diferente.

Isso logo se refletiu nas reuniões, nos almoços. Os homens, antes tão unidos, já não pareciam tão à vontade.

As crianças, no entanto, formaram um grupo harmônico e brincalhão. Ali tudo dera realmente certo. Como a esperança é a última que morre, quem sabe a partir delas as coisas não voltariam a se acomodar novamente.

Mas o mundo dos adultos não é tão simples. Os churrascos aos poucos foram sendo adiados. As tardes depois do expediente jamais se transformaram novamente em happy hour.

Para completar, um dos casais sem filhos se separou. A mulher voltou para a antiga cidade.

E o novo solteiro foi apontado pelas esposas como uma influência a ser evitada.

No trabalho, depois de muito tempo sem que ninguém tocasse no assunto, o novo solteiro tomou a iniciativa de comentar a história, e fez um retrospecto desde quando eram felizes no hotel até no que havia se transformado a vida depois que as famílias chegaram.

Alguns acharam que era inevitável. Que apenas tiveram um momento adolescente que escondia a realidade.

Alguém insinuou que as mulheres teriam estragado tudo. Foi duramente repreendido pelos demais. Machista, foi a resposta.

Era uma sexta-feira. Ao se despedirem, o solteiro falou que iria ao bar em que antes comemoravam o último expediente da semana, e que sentiria a falta de todos.

Ninguém sabe qual foi o primeiro a ligar para a mulher dizendo que iria chegar um pouco mais tarde.

A esperança é a última que não bebe. Foram todos à happy hour.

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Música do dia

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.

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