Pano de graxa

In ABCD, Artigo On
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Por Guttemberg Guarabyra*

Toda vez que desembarco de um avião, olho para o horizonte das pistas e sinto-me novamente, mesmo que por um átimo de segundo, um garoto no meio do silêncio profundo e amplo do aeroporto de Bom Jesus da Lapa. Como do meio pro final da tarde cessavam os voos, eu me distanciava de bicicleta pela pista deserta até a cabeceira de onde os aviões, mais cedo, faziam a checagem final, aumentavam a potência dos motores e corriam acelerando até decolar. Só dali dava para ver que a pista não era tão plana quanto parecia, e que não havia jeito de enxergar a outra extremidade. Hoje desço dos aviões nos grandes aeroportos e há um lampejo daquele garoto solitário, na ponta da longa pista, sendo afagado pelo vento. Sempre venta na vastidão aberta dos campos de pouso.

Tive a sorte de ter vivido num tempo e lugar em que não havia burocracia para chegar perto dos aviões e do mundo que os cercava. Certa vez, fomos levar a mulher de um amigo a Carinhanha. Carlota estava grávida de muitos meses e a viagem por terra lhe seria extremamente penosa. Um amigo, 15 anos como eu, filho de piloto, era quem dirigia o avião. Se houvesse a fiscalização de hoje, não nos deixariam nem sequer ligar o motor. Na volta, desprezamos a linha reta da menor distância e seguimos pelo ar o curso volteante do rio São Francisco. Bem à frente, lá embaixo, avistamos uma coroa — ou pequena ilha de areia. Nela, alguns pontinhos em movimento. Eram pescadores. O amigo piloto propôs-me: “Quer ver?”. E, imediatamente, subiu.

Com o bico do monomotor apontando para cima, disparou rumo às nuvens mais altas. Depois estabilizou o avião numa considerável altitude e, na sequência, embicou a máquina de volta ao solo em direção àquela ilha, agora apenas uma mancha de areia branca. Como a distância era muito grande, passou-se algum tempo até que começássemos a distinguir as coisas e as pessoas. Porém logo pudemos identificar uma grande tenda branca. À porta da barraca, uma fogueira aquecia um caldeirão de cozinha dependurado numa forquilha, e, diante dela, espalhados pelo terreno, pescadores, vários agachados, alguns de pé, portando pratos do almoço nas mãos. Todos já com os rostos virados em nossa direção. Em pouco tempo perceberam que a aeronave voava direto e reto na direção de onde se encontravam. Quem estava agachado tratou de se pôr de pé. Quem estava de pé não se movia. Após um surto passageiro de paralisia coletiva, largaram os pratos no chão e, em pânico, debandaram em todas as direções, enquanto, às gargalhadas, embicávamos de volta ao céu azul. Toda vez que recordo o episódio, acho que haveria uma lacuna em minha vida se não houvesse passado por aquela experiência. Por outro lado, dou graças a Deus pela rigidez e controle da fiscalização de hoje. Avião de verdade na mão de gente de 15 anos é brincar com a sorte, pra não citar a rima.

E havia também Valentim, que começou ainda rapazinho, como mecânico. Seu chefe imediato era Negrão, meu cunhado. O mecânico-chefe de todos era Piauí, e havia mais dois ajudantes: Domingos e outro de cujo nome não lembro mais. Todos negros. Deveriam ser dos negros mais felizes do lugar, visto que, apesar dos disfarces, na cidade, a sociedade da época não conseguia esconder o cunho racista, enquanto no aeroporto a aviação fazia voar para longe os preconceitos.

Dessa forma, no aeroporto de Bom Jesus da Lapa imperava uma inexistência de burocracia e vicejava uma democracia pura com muita liberdade. E Valentim, dando uma banana para os preconceitos, progrediu. Dedicado, acabou tirando brevê, pilotando para outros e, mais tarde, tendo seus próprios aviões.

Um dia não voltou de uma viagem. Houve uma incansável busca na área. Todo o clube, toda a grande família das hélices ajudou. Não foi encontrado. Anos se passaram até que o avião fosse localizado na imensa caatinga. Valentim fizera um pouso forçado bem-sucedido. Ao menos era isso que se deduzia do avião encontrado intacto, a não ser pela bússola faltante no painel, certamente retirada para que o piloto se orientasse pelos caminhos do sertão na tentativa de reencontrar a civilização. A elucidação do mistério, porém, para por aí. O corpo jamais foi encontrado, embora muitas vezes eu desça dos aviões nos aeroportos de hoje, e, num lampejo de tempo, frequentemente o veja escondido por detrás de um hangar, dentes alvos e sorriso brilhante, acenando-me com o pano de graxa.

Música do dia

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
  • O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
  • Esta crônica, por exemplo, “Pano de graxa” , está nas páginas 191 e 192 dessa publicação imperdível, do mesmo nome.
  • Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas, em conclusão, o Diário Popular.

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