Guttemberg Guarabyra
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A campanha era importante, seria veiculada na sua majestade Tv Globo, e não podíamos falhar nem na composição nem na execução.
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Afastamos os microfones com o máximo cuidado. São criaturas sensíveis.
Em seguida levamos as estantes de partituras até um canto. Biombos fechados, cadeiras fora do caminho, estava pronto nosso luxuoso campinho de futebol.
Não lembro o que nos servia como bola improvisada. Dois pedestais marcavam as traves e a partida se iniciava.
A grossa parede com isolamento acústico não permitia que os chutes, gritos e o som da correria fossem escutados do lado exterior. Nosso futebol secreto, cujo time era formado pelos músicos que todos os dias se reuniam para gravar jingles, era um sucesso.
No dia em que um cliente inesperado nos surpreendeu, precisamos rearrumar tudo numa velocidade superior à dos piques desfechados pelos craques no amplo estúdio de gravação.
A campanha era importante, seria veiculada na sua majestade Tv Globo, e não podíamos falhar nem na composição nem na execução.
Nem havia pensado ainda em criá-la quando o representante da agência a quem devíamos entregar a música, o jingle, foi anunciado na portaria.
A telefonista, cúmplice aflita, a única a saber o que se passava no estúdio, avisou-nos da visita inesperada. O cliente viera assistir à gravação.
Foi um deus-nos-acuda parecido com o dia em que Roberto Carlos veio visitar o estúdio recém-inaugurado. Naquele dia, em vez de nos encontrar na correria atrás da bola, nos flagrou placidamente deitados no chão, nos recuperando da noite mal dormida na estrada, após termos atravessado mais um pedaço do país na tarefa de mandar ver nos palcos.
Por sorte, como músico, entendeu perfeitamente a cena, e do alto do patamar superior nos saudou com um alegre bom dia, e continuou a visita enquanto nós, ainda sem entender direito a cena, pensávamos estar contemplando uma visão.
Desta feita, porém, contamos com a cumplicidade da telefonista e nos aprumamos a tempo de atender o bom dia do cliente com um ar profissional de quem possuía o trabalho perfeitamente em ordem para ser apresentado.
Cumprimentei-o efusivamente. E o convidei para outra sala, no intuito de mostrar-lhe reservadamente o trabalho.
Fechei a porta, puxei-lhe uma cadeira. Afinei o violão, passei a correia do instrumento por sobre os ombros. Deitei os dedos no mais simples dos acordes. Um dó maior fechado. O primeiro ministrado nas aulas de violão.
Dedilhei o instrumento, ouvi o som ressoar, e sapequei de improviso:
“Mexa-se, você pode mudar o mundo… Mexa-se que a tristeza vai logo embora… Pense uma vez mais no que pode fazer agora”
E emendei uma segunda parte.
“Cante mais, ande mais, pule mais, corra mais…”
Enquanto improvisava, não tirava os olhos do freguês (Rogério Duprat, o maestro da Tropicália, meu sócio no estúdio, preferia esse substantivo a ‘cliente’).
Quando abriu um sorriso, rapidamente pausei e confessei não haver acabado completamente o trabalho. Precisava ainda ajeitar umas coisinhas.
Pedi para aguardar por alguns minutos. Corri direto ao estúdio e gravei urgentemente a melodia e a letra, antes que esquecesse o improviso engendrado.
A campanha publicitária acabou premiada, o jingle virou sucesso nacional, viralizou nos intervalos comerciais da Globo, tocou pelos salões de todo o país no carnaval daquele ano, puxado pela estrondosa execução da naquela época imbatível Banda do Canecão, que a gravou.
Quanto ao futebol secreto, com o passar do tempo o estúdio foi sendo requisitado por outros artistas e o espaço para nossas peladas foi desparecendo.
Deveria ter incluído na letra, chute mais, grite mais, para ver se as partidas continuavam. Mas, apesar da torcida, nossa diversão foi logo embora.
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Música do dia
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.