José Eduardo Homem de Mello, o Zuza, que nos deixou neste domingo, 4 de outubro, também deixou para a posteridade “A Era dos Festivais”.
Literalmente. Mais que o livro, de leitura imprescindível.
Em um trecho, cita Guttemberg Nery Guarabyra Filho, de Sá & Guarabyra, vencedor do II FIC (Festival Internacional da Canção), de 1967, com Margarida (cantada por ele e o Grupo Manifesto).
Um documento histórico, a fim de que as pessoas saibam um pouco sobre o que é viver sob uma ditadura, seja ela qual for.
Guarabyra também foi diretor de festivais da Globo, função para a qual fora contratado “para não concorrer mais, pois ganhava todos” – disse-me certa feita Zé Rodrix ao falar do parceiro -, e nessa condição ele é citado no livro.
Eles falam do VI FIC, de 1971, cuja música vencedora foi Kyrie, de Paulinho Soares e Marcelo Silva, com o Trio Ternura.
Antes de reproduzir a parte do livro, conto conversa com Gut – apelido de Guarabyra – neste domingo, quando falávamos da irreparável perda de Zuza, e perguntei sobre essa passagem.
Ele revelou: “Engraçado dessa história é que Zuza telefonou apenas porque estava fazendo um livro sobre os festivais e, como fui ganhador, diretor etc., queria meu depoimento. Mas no meio do papo, perguntado sobre como foi o último festival que dirigi na Globo, quando comecei a contar os detalhes daquele evento, ele se assombrou. Ninguém jamais havia narrado nada sobre os bastidores daquilo. E ele quis saber como eu jamais havia comentado nada sobre. Eu respondi: Porque ninguém nunca havia me perguntado. Ele achou inacreditável. Acabou virando o tema central do livro. Fiquei tão treinado em guardar segredos, que havia esquecido que a história era para ser contada.”
O trecho bomba
Agora, deliciem-se com o trecho do livro “A Era dos Festivais”, do genial Zuza Homem de Mello:
“Pouco antes do VI FIC, a vontade do Exército de controlar o Festival atingiu as raias do absurdo. Não apenas exigiu que os compositores participantes tivessem a carteira de identidade registrada na Censura, como até os intérpretes e acompanhantes teriam de ser fichados. Uma ficha completa de cada um deveria ser enviada a Brasília para que os dados fossem checados e emitidas as carteirinhas, que eram então devolvidas ao Rio. Essas informações eram colhidas pelo jovem diretor artístico do Festival, Guttemberg Guarabyra, e passadas pelo diretor geral do Festival, Augusto Marzagão, a Carlos Alberto Rabaça, braço direito do coronel Otávio Costa na Assessoria Especial de Relações Públicas da Presidência da República (AERP).
‘Meses antes, Gut tivera uma ideia mirabolante. Uma ideia perigosa, na qual acabaria por exercer um papel duplo, que tinha como principal finalidade detonar aquela imagem favorável, propagada pelo governo brasileiro no exterior, execrada com razão pelos compositores. Como o diretor artístico do FIC poderia agir em favor dos compositores que estavam contra esse mesmo Festival? Como ser a favor do FIC que se servia das músicas desses compositores para transmitir ao mundo uma falsa imagem do Brasil? Como um elemento da emissora de televisão que mostrava essa imagem cor-de-rosa do país em plena ditadura do general Médici poderia atuar contra os interesses de sua empregadora?
‘Gut convenceu Augusto Marzagão que se deveria exercer uma pressão sobre alguns compositores para que participassem do Festival. O plano era convidar elementos da imprensa especializada a apontarem 12 compositores de tal envergadura que não precisassem nem passar pela primeira triagem como os demais inscritos. Suas músicas seriam recebidas e aceitas, estando assim automaticamente selecionadas e incluídas nas semifinais.
‘Dessa maneira, atenuava-se sua predisposição contra o Festival, pois, com o status de compositores privilegiados que lhes era dado, poderia ser quebrada a barreira. Eles se sentiriam sensibilizados a inscrever suas músicas, afinal, em última análise, não ficaria bem que compositores considerados publicamente de primeira linha deixassem de participar.
‘Marzagão temeu pela reação dos compositores, mas Gut prometeu ter uma conversa com esse primeiro time da música brasileira. Antes mesmo da escolha dos jornalistas, ele já imaginava quem seriam os escolhidos. Tão logo a lista de privilegiados foi divulgada, Gut procurou sigilosamente um deles, Chico Buarque, para desenvolverem o plano da conspiração de usar o Festival e sua principal emissora de televisão como forma de protesto internacional. Chico ficou de convencer os demais colegas compositores a aderirem, mas alguns deles se recusaram peremptoriamente a enviar canções, alegando problemas que tinham tido com a direção do Festival. Antes mesmo que Chico chegasse a explicar o plano, as respostas eram negativas, não queriam saber de nada relacionado a festival. Outros, porém, aceitaram pelo menos conversar sobre o assunto e, assim, marcou-se uma reunião onde seria exposta a segunda parte do plano, que nem Marzagão conhecia, e era a seguinte: os compositores aceitariam participar do Festival, inscreveriam músicas, mas ninguém entregaria as letras. Aguardariam até o último momento do encerramento das inscrições e, aí sim, entregariam todas de uma só vez. Mesmo que as letras fossem contra a ditadura, a Censura não teria coragem de barrar, pois se tratava dos melhores compositores brasileiros. A Globo também não poderia recuar, afinal, nessa altura já teriam sido anunciadas aquelas atrações incríveis e não haveria como explicar uma desistência.
‘Seria uma explosão no Festival e o fim do seu uso como propaganda cor-de-rosa do regime militar.
‘Chico Buarque morava numa linda cobertura, rodeada de um terraço de pedra mineira e com vista total para a Lagoa Rodrigo de Freitas.
‘Convocou os compositores para a reunião em seu apartamento e dispôs várias cadeiras como um pequeno auditório, tendo à frente uma mesinha mais alta para quem fosse falar. Gut saiu da Globo meio escondido e às 4 da tarde estava lá. Chico fez a apresentação para os compositores presentes, entre eles Ruy Guerra, Paulinho da Viola, Sérgio Ricardo, Marcos e Paulo Sérgio Valle, Edu Lobo e Capinan, dizendo que Guarabyra tinha um plano a apresentar e era para isso que todos estavam ali reunidos, inclusive ele, que também iria escutar o que se tinha a dizer.
‘Mal Gut começou a explicar a primeira parte do plano, o inflamado Ruy Guerra, que discursa muito bem, pediu a palavra para arrasá-lo argumentando que eles não eram palhaços para serem enganados numa jogada que, estava na cara, era da TV Globo e iria colocá-los em perigo. Enfim, liquidou com Guarabyra. Em pouco tempo já tinha o apoio de alguns presentes e Guarabyra, acostumado a essas reações, sentiu que o plano iria por água abaixo.
‘Nenhum dos presentes, Ruy Guerra muito menos, sabia da vida ambígua que Gut levava, completamente diferente da que aparentava. Aos olhos de todos os compositores, estava queimado, pois trabalhava na TV Globo, de mãos dadas com o governo militarista. Não era bem assim. Já estava separado de sua primeira mulher e morava num aparelho cujo aluguel era dividido com a Aliança Libertadora Nacional. O apartamento do diretor do FIC da TV Globo, na rua Hilário Gouveia, que ficava quase defronte à delegacia de Copacabana, era entreposto de armas e uniformes das Forças Armadas, para uso dos guerrilheiros contra a ditadura. Gut não podia dar bandeira de maneira alguma, nem chamar muita atenção para si, no que era escolado. Tinha um treinamento de muitos anos no assunto, desde a década de 1960, quando morava no apartamento do irmão. Nem Chico Buarque, que o conhecia bem, sabia dessa sua atividade.
‘Em 1966, o baiano Guttemberg Nery Guarabyra Filho morava no Méier num ambiente muito politizado, pois seu irmão José era líder sindical dos petroleiros, um setor muito visado em virtude do poder de outras empresas multinacionais do setor. José Nery Guarabyra era filiado ao Partido Comunista e abrigava frequentemente fugitivos políticos que dividiam o quarto com Guttemberg. Foi assim que este aprendeu desde muito cedo a acobertar pessoas ou arquivar armas em seu quarto.
‘Gut frequentava um núcleo do Partido Comunista no Teatro Jovem da praia do Botafogo, que realizava às sextas-feiras animados encontros musicais juntando novatos com artistas mais famosos, como Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Nara Leão e Nelson Lins e Barros. Foi Paulinho quem apresentou Guarabyra como um “compositor rural” a Nelson Lins e Barros, que o convidou para morar em seu apartamento em Copacabana e ficar mais perto da música, próximo de Edu Lobo e Chico Buarque. Quando Nelson morreu, Gut foi morar no Solar da Fossa, no mesmo quarto de Paulinho da Viola e Abel Silva.
‘Agora ele se via diante daquela reação de Ruy Guerra sem poder abrir o bico. Foi com surpresa que, nessa altura, quando parecia que estava tudo perdido, Paulinho da Viola pediu a palavra e fez um verdadeiro relatório sobre a vida de Gut, dizendo que por ele botava a mão no fogo.
‘Devidamente avalizado, a situação se reverteu inteiramente e Gut pode então explicar o plano todo que, afinal, foi bem recebido e obteve o apoio dos compositores presentes e, posteriormente, até de ausentes como Tom Jobim, que estava nos Estados Unidos, e Baden Powell, na França.
‘Dessa maneira, alguns dos maiores compositores brasileiros iriam dar o troco a quem usava seu nome para uma divulgação de segundas intenções em caráter internacional. Era mesmo uma conspiração usando a própria TV Globo, promotora do VI FIC, para um protesto contra a Censura.
‘No limite dos preparativos para o Festival, quando toda a divulgação já fora feita e já se encontrava na etapa dos arranjos, começaram a surgir algumas letras, que nada tinham a ver com as partituras, algumas nem cabiam na métrica das músicas. A Censura brecou tudo, algumas letras nem apareceram. Foi um pandemônio, um Deus nos acuda. Assim que as músicas foram proibidas, por sugestão de Júlio Hungria, do Jornal do Brasil, Gut e o grupo de compositores pediram ao jornalista Fernando Garcia para produzir uma declaração que teria a assinatura de todos os participantes do grupo, retirando suas músicas do Festival e culpando a Censura.
‘Funcionaria como uma pesada contrapropaganda ao que o governo fazia através do Festival Internacional da Canção. Assinaram Paulinho da Viola, Edu Lobo, Egberto Gismonti, Vinicius de Moraes, Toquinho, Chico Buarque, Ruy Guerra, Capinan, Sérgio Ricardo, Tom Jobim, Marcos e Paulo Sérgio Valle.
‘Como os manifestos eram, no entanto, proibidos por lei, a declaração foi redigida sob a forma de uma carta aberta à população, faltando decidir quem a entregaria, pois sabia-se que a intenção dos militares era sempre agarrar o cabeça dos movimentos e, para eles, quem entregasse a carta à imprensa era o líder. Foi resolvido que a carta seria jogada no quintal do Pasquim, que tentaria publicá-la, mas, provavelmente, seria impedido pela Censura. Contudo calculavam que houvesse tempo para que O Pasquim passasse a carta a outras redações onde havia jornalistas de esquerda, alguns dos que colaboraram com a lista dos melhores compositores. Assim foi feito, mas a Censura foi rapidíssima e o único jornal brasileiro que conseguiu chegar às bancas com a carta publicada foi uma edição da Última Hora, que ainda assim foi recolhida. A Censura só não contava com a repercussão fora do Brasil. Uma agência internacional conseguiu mandar a notícia e a carta foi publicada no exterior, atingindo em cheio a propaganda da “Ilha da Tranquilidade” do governo brasileiro.”