Uma chama de energia

In ABCD, Artigo On
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Por Guttemberg Guarabyra*

Encontrei a mim mesmo, por acaso, tomando um solzinho numa rua aqui perto de casa. Estava na calçada, à porta de um café, com um jornal entre as mãos, olhos fechados, a face totalmente exposta ao sol. Parecia que estava engolindo a luz. Como se tratava de mim mesmo, e como me conheço perfeitamente, compreendia o quanto aquela sensação vigorosa me fazia bem. Aquele “eu” estava desanimado havia tempo. Problemas. E tinha encontrado aquela chama de energia tão por acaso quanto nosso encontro inesperado.

Aconteceu que, assim que saiu do pequeno estabelecimento, onde se servira de um cappuccino tão saboroso que lhe havia até incutido um pouco de ânimo, foi surpreendido por aquele ataque de luz e calor. Imediatamente, percebeu o quanto aquilo poderia ser benéfico e dirigiu o rosto para cima, ávido por absorver o jorro de energia tonificante e grátis.

Muito importante o fato de ser de graça. Um dos problemas, cujo desdobramento significava-lhe um problema ainda maior, era a falta de dinheiro. A situação era ambígua, pois subsistia sem dinheiro havia tanto tempo que já deveria ter se acostumado. Porém, o problema da falta de recursos financeiros geralmente não é a falta de recursos em si, mas as dívidas que decorrem dela. Logo, uma coisa é a dureza; outra é a dureza com obrigações que não podem ser liquidadas.

Naquela manhã eu havia acordado sem perspectiva alguma, sem nenhuma ideia do que fazer para melhorar as finanças, o que resultava num grave conflito psicológico que me deixava totalmente inseguro. Resolvi andar um pouco, a ver se me ocorria alguma ideia que pudesse ajudar. Não esperava topar o outro “eu” na porta do café, displicente, aproveitando o sol. A primeira reação foi a de comparar aquela atitude negligente à situação aflitiva pela qual estava passando, merecedora de urgentes providências, e inquirir por que razão, em vez de estar cuidando de atendê-las, encontrava-se ali tomando um cafezinho e um solzinho quentes. Deu vontade de aplicar uma tremenda de uma descompostura em mim mesmo. No entanto, acreditem, tive piedade.

Era uma circunstância estranha e incoerente, porquanto, ao mesmo tempo que tinha ciência de que deveria me advertir seriamente, sabia que isso de nada adiantaria, pois não fora por falta de esforço e trabalho dedicado que tinha chegado àquela condição. Ora, não faz sentido um mundo sem um mínimo de aceitação. Nem tem cabimento uma existência desprovida de uma dose qualquer de desleixo. Refletindo assim, reconheci que não poderia ser um déspota de mim mesmo e relaxei. E fiquei ali me observando na tentativa de extrair da natureza a energia vital, cada vez mais rara e cara.

Aí recomeça a questão da grana. Com dinheiro, o desejo de viver é outro. Tendo a conta estável no banco, a gente acorda de manhã e, se quiser, sair para passear — não será apenas pela necessidade de espraiar a cabeça dos conflitos. Vai sair para curtir a vida mesmo, gastá-la, vê­-la passar. Tão pródigo de felicidade e de certezas que nem sequer vai notar a dádiva preciosa se escoando pelo tempo. A realidade, porém, é cruel. Mas, por sorte, o entendimento é perfeito quando se pode sentir exatamente aquilo que o outro está sentindo. Foi mercê disso que me perdoei profundamente e retornei ao meu cantinho. À noite, até dormi bem. No dia seguinte, nem saí de casa.

Música do dia:

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
  • O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
  • Esta crônica, por exemplo, “Uma chama de energia”, está nas páginas 227 e 228 dessa publicação imperdível.
  • Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas o Diário Popular.

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