Uma carta

In ABCD, Artigo On
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Por Guttemberg Guarabyra*

“Vi o João algumas vezes. Uma loucura. Vi Sinatra duas vezes. Nada igual. E vi Chet Baker já estragado cantando My Funny Valentine e Nina Simone fazendo Woman no Cry durante 43 minutos no dia que o Bob Marley morreu. Deus existe.”

Quando Sérgio Campanelli me convidou para trabalhar com ele no departamento de Rádio e Tv da DPZ, na época a mais criativa agência de publicidade brasileira, estava meio que solto no ar em São Paulo, inclusive sem morada fixa, daí que aceitei o convite para morar num quarto do apartamento que Campa, como o chamávamos, dividia com a esposa. Foi uma mão na roda, já que saíamos juntos para o trabalho todas as manhãs e, em vez de usar táxi, aproveitava a carona no carro do amigo até a agência.

Na agência, voltei a trabalhar com Iracema, com quem já havia trabalhado no estúdio Vice-Versa, do qual era sócio, o que me deixou mais à vontade, pois que chegar a um trabalho novo em que há uma velha amizade deixa a adaptação bem menos complicada. E melhorou ainda mais quando começamos a namorar.

O único, digamos, problema, se esta é a palavra correta (acho que não) era que o principal redator da agência também era apaixonado por Iracema e morava no mesmo edifício de apartamentos onde eu morava de carona e exatamente no apartamento de cima. E com mais uma agravante. Meu quarto ficava exatamente abaixo do cômodo em que o redator tinha montado seu escritório caseiro. E, como o mais comum em minha rotina de trabalho, muitas vezes em parceria com Iracema, incluía acompanhar a produção de trilhas sonoras cujas mixagens quase sempre avançavam madrugada adentro, Iracema quase diariamente, ou melhor dizendo, madrugadamente me deixava à porta de casa, na Alameda Franca.

Geralmente exaustos, já que a trabalheira era pesada, perdíamos um tempinho dentro do carro batendo um papo sobre os acontecimentos do dia, trocando uns beijinhos de despedida e, é aí que começa essa história, olhando sorrateiramente para a janela do apartamento do redator apaixonado e notando que ele, idem sorrateiramente, observava nossa chegada lá de cima.

Eu entrava em casa e invariavelmente comia alguma coisa leve que Lorena, mulher do Campa, deixava na geladeira me esperando. Depois ia me aprontar para dormir… E para ouvir o batucar desesperado da máquina de escrever que o redator matava a pancadas no apartamento de cima, cujo som atravessava a parede do teto e me transmitia aquelas mensagens de agonia e ciúme, que eu compreendia perfeitamente e sofria junto, já que o pretendente de minha namorada tinha se tornado um grande amigo.

Acabou que compus um tema sobre essa situação. A letra, que naturalmente disfarçava o caso, dizia: Quando é hoje o carteiro traz / uma carta e uma conversa de há tanto tempo / Eu não falo do que ainda dói / e prefiro não viver esses momentos / Sei da noite em cada solidão / onde cada louco perde a calma / a calma / O meu coração não deixa ler os teus / e desses meus me faz ficar alheio / alheio / Nos momentos densos de aflição / nossas cartas não devem falar.

A música, sem a letra, acabou entrando de forma instrumental, com um incomum solo de assobio (eu interpretando) numa novela da Globo. Claro que, depois de muitos anos, revelei a ele o segredo contido naquela música. Mas hoje abri muito tristemente o repertório de mensagens que viemos trocando todos esses anos, já que nossa amizade perdurou para sempre. O texto que transcrevi na abertura faz parte do nosso repertório de mensagens. Está em uma de nossas muitas conversas sobre música, que era, a música, parte integrante de sua alma que hoje voou e a quem deixo essa última carta. Adeus Washington Olivetto, Pelé da publicidade brasileira. Com todo amor: Gut (como me chamava).

Tema do assobiador (novela Dona Xepa)

Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica no portal crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas, em conclusão, o Diário Popular.

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