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Por Guttemberg Guarabyra*

Cena

Uma senhora desconhecida, meia-idade, regou as plantas na varanda do apartamento, por volta de dez e treze da manhã. O semblante preocupado era o antirretrato de uma flor. A mão esquerda, solta, parecia segurar um cigarro, embora nada contivesse. Deixara-o queimando no cinzeiro da sala. Não tinha vergonha do vício, mas não poderia invadir o espaço das flores poluindo-o com fumaça. Passado um quarto de hora, deitou o regador de lado e ficou por dois minutos apreciando uma flor. E mais quatro dando uma geral nos vasos.

Telefonema

Estava no escritório quando chamaram de Nova York. Era o irmão maluco. Ajeitou a gravata, pediu que aguardasse um momento, largou o telefone sobre a mesa e fechou a porta que o separava da recepção. Antes de voltar ao aparelho, ajeitou novamente a gravata como se fosse iniciar um discurso. Nem teve tempo de reclamar. O irmão maluco de Nova York estava com a cabeça muito boa. Em vez de se aborrecer deu imensas gargalhadas. E ainda mandou mais dinheiro.

Ave-Maria

Quase na Ave-Maria, surgiu uma garoazinha. Dava para ouvir alguns trovões ao longe, e, na direção da Serra da Cantareira, alguns raios começaram a despencar. Mesmo sendo o primeiro da fila e precisando de dinheiro, torceu para que ninguém lhe pegasse o táxi. Justo quando a chuva aumentou surgiu uma senhora. Abriu a porta, cumprimentou-o secamente e o mandou seguir para a Serra da Cantareira. Tem dias que não há quem nos livre do mal, amém.

Donaninha

Nem tinha amanhecido quando Donaninha, 93, dormiu o sono mais profundo e eterno. De manhã, o arraial todo soube da notícia, que se espalhou até as outras praias. Vieram dezenas de caiçaras amigos para o velório. Enquanto iam chegando, surgiu um grupo de golfinhos seguidos por uma revoada de gaivotas que realizavam esplêndidos giros no ar. Na porta da igreja, praticamente na areia da praia, ninguém sabia se velava Donaninha ou se admirava aquele bailado. Ali, naquele momento, ninguém comentou o fato. Depois do enterro, no entanto, era só no que se falava. Ficou logo estabelecido que não tinha havido nenhuma coincidência. Amigos, golfinhos e gaivotas não comparecem a velório por acaso.

Música do dia:

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
  • O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
  • Esta crônica, por exemplo, “Últimas Notícias”, está nas páginas 225 e 226 dessa publicação imperdível.
  • Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas o Diário Popular.

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