Trem pra mineiro é tudo

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  • Guttemberg Guarabyra

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Naquele Brasil anterior aos satélites de comunicação, as mensagens chegavam praticamente a pé.

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Meu irmão ligou-me de Altamira.

Em breve deixaria a selva, onde servia no INCRA, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, como radiotelegrafista.

Não faço ideia de quanto tempo teve que aguardar até que nossa ligação fosse completada.

Naquele Brasil anterior aos satélites de comunicação, as mensagens chegavam praticamente a pé.

Por via de imprevistos, morei alguns meses na mineira Pirapora, da ponte ferroviária Marechal Hermes, cujos trilhos sobrevoavam as corredeiras do São Francisco. Aliás ainda estão lá, os trilhos e a ponte, aguardando que sejam reformados em breve, para a alegria da população que a estima e adotou como símbolo, cartão postal, ícone, identidade.

Precisava voltar ao Rio de Janeiro, a fim de tentar, mais uma vez, fazer andar uma carreira artística que teimava em descarrilhar, e precisava de notícias sobre como andavam as coisas por lá.

Pedi à telefonista que ligasse para Sidney Miller.

Sidney, que já era compositor consagrado, gravado até por Nara Leão, havia se tornado amigo de bar, de violão, de risadas, cantorias e mil aventuras.

Uma ligação de Pirapora para o Rio de Janeiro naquele tempo poderia tanto ser completada em horas como em dias. Nesse caso, completou-se três ou quatro dias depois.

Nesse ínterim, não pude me afastar dos lugares em que havia algum assinante da companhia telefônica que pudesse ceder-me o aparelho telefônico, quando a chamada fosse completada.

Para quem acreditava que minha menção sobre como se locomoviam as comunicações naquela época era brincadeira, desta feita ela chegou ao fim da linha literalmente a pé.

Estava na praia, mergulhando nas corredeiras, quando notei uma adolescente que não conhecia, vestido ao vento, cabelos idem, acenando-me e gritando da margem do rio.

O barulho das corredeiras não permitiam que a ouvisse. Corri até lá e recebi dos pulmões cansados de tanto correr e gritar, a notícia. Minha ligação tinha sido completada e eu precisava alcançar o aparelho telefônico mais próximo urgentemente.

Por isso não faço ideia até hoje de quanto tempo, Gilson, meu irmão, dispendeu para me encontrar.

Eu morava em São Paulo. Ele pretendia mudar de vida. Queria deixar a selva de bichos e plantas e se aventurar na de concreto armado.

E precisava que eu lhe procurasse um local para alugar.

Vibrei com a vinda do mano. Seria incrível tê-lo novamente por perto. Embora, por dentro, temesse que a decisão pela mudança pudesse ser mau negócio para quem vivia há tanto tempo em outra realidade.

Em Altamira, tivera filhos, a família estava garantida por um emprego estável. O que não me impediu de imediatamente me comprometer em encontrar um lugar em que pudesse viver em paz. Ficou de me ligar novamente daí dois dias.

Mal desliguei o telefone, já tinha achado o lugar. Meu próprio apartamento, que tinha acabado de alugar e sequer mobiliado completamente.

Por sorte, conseguiu falar comigo no dia aprazado, e se mudou.

Não se adaptou. Meses depois já se tinha ido.

Nessa época eu administrava, com sócios, entre eles o maestro Rogério Duprat, um estúdio de gravação situado na mesma rua do apartamento que havia cedido ao mano. Que, depois que saiu, fora alugado por outros moradores.

Estava no escritório do estúdio certa manhã e surgiu o funcionário de uma gravadora que também se localizava na mesma rua Alves Guimarães.

Apresentou-se. Julguei que iria contratar o estúdio para uma gravação, mas veio com uma pergunta estranha. Indagou se por acaso eu tinha alguma ligação com um apartamento assim, assado, situado naquela mesma rua. Ficou claro que se referia ao apartamento alugado e repassado ao mano.

Queria saber se o apartamento possuía uma espécie de sótão com acesso por uma portinhola no forro. Sim, possuía.

Ah, exclamou. Então deve ser por isso. O sótão estava lotado de papelada minha. Revistas, jornais, cartazes de shows, documentos mil, que eu havia empurrado lá dentro no afã de deixá-lo vazio para Gilson.

Demos risada. Hoje, sou padrinho de seu filho e lá se vão muitos anos de amizade.

A comunicação é assim. Às vezes é obtida por traços e linhas do alfabeto Morse, por ligações de telefonia quase pedestre, por acasos, sótãos.

E quando a gente pensa que vai descarrilhar, ela sempre consegue restabelecer os trilhos.

Torço para que o povo de Pirapora consiga também recolocar nos trilhos sua ligação com a ponte, ainda que por lá não mais trafegue o trem de ferro. Pois que ‘trem’ pra mineiro é tudo.

 

Música do dia.

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.

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