Telegrafista paranoico

In ABCD, Artigo On
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Por Guttemberg Guarabyra*

O pior da paranoia é que ela sempre contém uma base lógica. Osvaldinho Telegrafista tinha uma enorme mania de perseguição, que se situava, porém, dentro de uma irrepreensível coerência. Foi por isso que, no dia em que me viu correndo, vindo do longínquo aeroporto de Bom Jesus da Lapa em direção à cidade, não teve a menor dúvida de que algo de estranho acontecia. Ele, Osvaldo, era frequentador do bar Samburá, ponto de encontro dos intelectuais de esquerda de Bom Jesus da lapa. Lá, tinha aprendido que a revolução socialista não tardaria. No bar ninguém duvidava de que Cuba, de Fidel, já estava salva; de que o Chile, de Allende, estava no caminho e que o Brasil, de Jango e Brizola, aproximava-se a passos largos do paraíso socialista.

Osvaldinho, impregnado desses ensinamentos, passou a defender a igualdade absoluta entre pobres e ricos, fazendo disso um evangelho. Ficaram famosas suas pregações nas lojas de Abílio e de Benjamim, mais conhecido como ‘seu Beijo’, contra o lucro que os comerciantes obtinham vendendo musselina e chita para a multidão de romeiros do Bom Jesus. “A palavra lucro tem origem no latim lucru, que quer dizer logro”, repetia incansavelmente embora ninguém lhe desse ouvidos. O socialismo, alertava, estava chegando para corrigir isso.

Como os sermões socialistas não conseguiam comover a população, nosso paranoico telegrafista acabou convicto de que, não apenas os comerciantes a quem tentava convencer de suas teses, mas toda a sociedade lapense conspirava contra ele, e pretendiam eliminá-lo da face da terra. Sendo assim, quando a situação política sofreu a histórica reviravolta que derrubou Jango e exilou Brizola, teve a mais absoluta certeza de que algo de extremamente ruim estava sendo tramado contra ele.

Osvaldinho estava na defensiva e com muito medo.  Os eternos gozadores de plantão começaram a convencê-lo de que realmente corria perigo, avisavam-no de que o Exército havia grampeado diversas de suas transmissões telegráficas feitas da sede local da Comissão do Vale do São Francisco, onde trabalhava há anos, para aliados subversivos do Rio, Salvador e São Paulo. E que não tardaria por vir em seu encalço.

Diante desse clima, não estranhei quando, no meio de minha habitual maratona que percorria do aeroporto à minha casa, entre o último voo da manhã e o primeiro da tarde, que repetia diariamente apenas para assistir meu irmão mais velho, que também era telegrafista e trabalhava no aeroporto, conversando com as tripulações das aeronaves, Osvaldinho emparelhou-se comigo e passou a me acompanhar querendo saber o que havia acontecido no aeroporto que me obrigava a fugir daquela forma.

Embarcando na seara das gozações emendei uma explicação apavorante. Disse-lhe que dois aviões militares repletos de soldados haviam acabado de aterrissar e que, ao iniciar a fuga, pude observar quando descarregavam uma enorme pilha de armamentos, que, em minha opinião, seriam utilizados numa invasão total à cidade. A reação do parceiro de corrida foi além do que esperava. Osvaldo tomou a dianteira, emendou uma terceira, uma quarta e uma quinta nos sapatos e sumiu em direção à estrada que levava para fora do município.

Dias depois, soube que havia desaparecido por completo e que a família, apavorada, andava à sua procura. Imediatamente fui até a casa onde vivia com os parentes e contei-lhes o que acontecera com mil pedidos de desculpas. Desaprovaram totalmente o que eu havia feito, mas pelo menos tiveram alguma pista esclarecedora do mistério. Dias depois, acabaram por encontrá-lo escondido num galpão retirado na fazenda de um tio, faminto, estressado, e um pouco mais louco.

Nunca mais brinquei assim. Ainda mais que a brincadeira se mostraria de mau agouro. Poucos meses depois daquilo, aterrissou pra valer na cidade um comando militar com a missão de investigar um provável foco de terroristas, e muita gente passou por maus momentos quando os boatos se transformaram na mais pura e implacável realidade.

Por isso nunca é demais repetir:

O pior da paranoia é que está sempre assentada sobre uma base lógica.

Música do dia

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica no portal crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
  • O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
  • Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas, em conclusão, o Diário Popular.

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