Tão cedo não vejo é país algum

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Marli Gonçalves

.Por Marli Gonçalves

Meu imortal Ignácio de Loyola Brandão parece mesmo ter previsto intuitivamente o que viria quando escreveu e publicou, em 1981, “Não verás país nenhum”, uma de suas premiadas obras de ficção, quase real 40 anos depois. Eu, hoje, apenas digo mais: a esta altura da vida, nunca pensei que veria, testemunharia, as coisas que acontecem diante de nós diariamente, seguidas de outras e tantas outras, como se nada mais importasse, numa estranha caminhada

E não saberemos ainda de muitos fatos que agora tentam nos negar até o próximo século, como se eles se sentissem tão importantes para que, daqui a cem anos, seus malfeitos sejam lembrados, pesquisados e divulgados por historiadores, quando precisamos apenas é que hoje sejam contidos antes que se efetivem, antes que marquem ainda mais esse tempo de terror. Não entendem que seus nomes já estão marcados, e da pior forma possível, e porque os detalhes do que praticam são antevistos.

Espero não parecer exagerada aos olhos especialmente de quem anda desligado dos fatos – e cada vez mais sei de pessoas que estão fazendo isso, se desligando, como se assim as coisas possam se transformar. Não fico sabendo, então, não me importo, pensam uns. Outros, desistiram, quedando apenas cansados. Há os umbigueiros que, se não atingidos de alguma forma, dão de ombros à toda a comunidade.

Talvez por profissão que me mantém ligada, talvez pelo signo, Gêmeos, diretamente ligado à comunicação, à curiosidade, talvez sei lá por que, estou sempre sintonizada nos fatos aqui do meu cantinho. E eles andam bem impressionantes. Pioraram na pandemia, principalmente os ligados à idiossincrasia humana. E os que pensaram que sairíamos melhores desses tempo terrível – e cheguei a acreditar nisso – perderam feio a aposta.

Saímos piores, mais pobres, mais amedrontados, mais loucos, mais feios, impacientes. Mais violentos. Mais egoístas. Como se ter sobrevivido não tivesse sido significativo, não obrigasse a uma renovação interior depois de tantas perdas, angústias e sofrimentos.

Saímos com casca mais dura, parece. Porque estamos suportando – protestando apenas baixinho, ou em letrinhas nas redes sociais – ataques diários à nossa integridade, à nossa inteligência e especialmente à nossa paciência. Vivemos tempos difíceis mundialmente, compreendo, mas em nosso país vivemos tempos particularmente perigosos e levianos, com a estrutura política abalada, e o incentivo à divisão cada vez mais danoso para aquele futuro, lembram? – aquele lá que nunca chega. Ou quando chega queremos gritar.

Senão, vejamos, para onde se olha: a miséria, a violência nas metrópoles incontrolada, tornando qualquer ida à padaria esporte de alto risco. Tudo será rigorosamente investigado, dizem, mas o que se vê é polícia perdendo tempo ocupada em controle e repressão ao comportamento diferente, justamente à diversidade que conquistamos. Assassinatos de mulheres, o feminicídio, fato diário e corriqueiro; assassinato de transexuais e travestis nos posiciona como um dos locais mais perigosos do planeta. Crimes contra turistas que nos afastam cada dia mais de uma de nossas principais fontes de renda e investimento. Como se não bastasse o extermínio dos povos indígenas e seus habitats. A construção desenfreada que nos faz temer se em uma noite não seremos expulsos de nossas casas impiedosamente, tudo substituído por torres horrorosas.

E agora essa que tentam nos impor negando por decreto informações para tudo que perguntamos com direito na base na lei, na transparência de dados, sigilo de 100 anos, sobre tudo que esse desgoverno faz no escurinho do cinema, os encontros que mantêm sob nossas barbas, combinando malditos planos corruptos com uns seres que saíram das trevas sob mantos inclusive religiosos. Não basta apenas o que esfregam com sua inoperância, há a provocação insidiosa à luz do dia, o incentivo ao armamento, à burla da democracia.

Não vemos país nenhum. Vimos e já vivemos o terror do passado. Não veremos mais nada se não nos ligarmos e agirmos.

Aliás, se acaso avistar alguma luz, avisa, que o verbo ver tem muitas flexões. E reflexões.

MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto.  (Na Editora e na Amazon). marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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