Por Guttemberg Guarabyra*
O cronista sem assunto, ou sem capacidade momentânea para achar um tema, é um protótipo de homem em estado terminal. Agonizante, apela para o uísque. A bebida vale por uma iluminação. Concentra-se esperançoso enquanto cintila pelos neurônios a pretensa inspiração on the rocks. Horas mais tarde, já completamente embriagado, senta-se resoluto diante do computador. Logo surge um tema e flui pelos dedos um texto que aparenta ser digno de um Machado de Assis. Na ressaca do dia seguinte, no entanto, antes que alguém ponha os olhos naquilo, sai apagando o texto ridículo apressadamente. E torna-se ainda mais desesperado.
Na época em que estava escrevendo O outro lado do mundo, tive uma crise dessas. Havia escrito 170 páginas e ainda não conseguia fechar o epílogo. Depois de muito tentar, digitando e deletando com a mesma sofreguidão, resolvi dormir e esperar que um passarinho viesse me contar, em sonhos, alguma história que desse em crônica. Em vez disso, porém, acordei com uma canção na cabeça. Pior que era bonita e tive que passar a mão no violão e me dedicar a ela, atrasando ainda mais o término do livro.
Não raro, sonho com uma composição e acordo como um canário, trinando uma melodia. A maioria não é grande coisa. Faria bem melhor acordado. Algumas, porém, surpreendem. Numa excursão a Goiás, amanheci com um tema intrigante grudado na memória. Sonhei que me apresentava num palco e observava atentamente minhas mãos desenhando no violão uma harmonia que jamais havia experimentado. A melodia, doce e forte, arrebentava nas caixas de som. Estranhamente, vinha com fragmentos da letra, coisa rara de acontecer em meus sonhos, em que geralmente somente a melodia ficava retida na memória —: “Dona…”. Daí seguiam-se compassos de solo instrumental. Inesperadamente a letra reaparecia: “Tã, tã, tã, batem na porta, não precisa ver quem é…”. “Entre a cobra e o passarinho, entre a pomba e o gavião…”. No auditório, divisava, cantando comigo, minha mais amada namorada.
Ao acordar, recordei a melodia completa. Escrevi o poema fracionado numa folha de papel. Tornou-se evidente que se tratava de um quebra-cabeça. E que bastava montá-lo. O parceiro, Sá, dormia num quarto sobre o meu. Nervoso, com medo de esquecer algum trecho, queria que viesse urgentemente me ajudar. Chamei-o ao telefone. Só dava ocupado. Ah, se já estivéssemos na era dos celulares. Tentei de novo. Quinze minutos se passaram e o telefone não desocupava. Empunhei então um rodo que tinha visto no banheiro e comecei a bater no teto, que era chão do quarto de cima, com a ponta do cabo. Dois quilos de caliça e pó de tinta depois, o parceiro apontou à porta, esbaforido, e avistou meu teto parcialmente despedaçado. Sem perder tempo para explicar o ocorrido, apresentei-lhe imediatamente a composição inacabada, que o surpreendeu da mesma forma que havia me impressionado. Depois da surpresa, pusemo-nos a trabalhar até que, finalmente, montamos as peças do jogo que terminou resultando num monte de emoções na vida, pois a canção, que entoava para a Dona presente na plateia do sonho, acabou virando sucesso e uma espécie de hino a todas as mulheres. E que aproveito para incluir hoje como ‘música do dia’ em homenagem a essa data pra lá de querida.
Música do dia:
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras. Esta crônica, por exemplo, “Tã tã tã, batem na porta…” está nas páginas 211 e 212 dessa publicação imperdível, onde tem inclusive um QR Code que leva à música Dona, de sua autoria. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini) e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas o Diário Popular.