Somos todos imortais

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Marli Gonçalves

Marli Gonçalves*

Tudo o que temos passado nos últimos tempos nos faz pensar bastante sobre o que temíamos e evitávamos, como a morte. Ao mesmo tempo, reforçamos nossa vontade de também sermos mesmo imortais; de alguma forma, imortais – jamais sermos esquecidos. Só esperando que seja pelas coisas boas que fizemos

Na Academia Brasileira de Letras a atriz Fernanda Montenegro acaba de ser eleita em grande estilo e alta votação para ocupar a Cadeira 17, que assumirá em março do ano que vem. Não vai ser problema para quem já deu vida a tantos personagens assumir mais este papel, embora agora na vida real. Já vejo a Fernanda um pouco sem jeito vestida com seu fardão majestoso, uma calça e a blusa sem fecho, verde-escuro, oliva, inspiração militar, bordado com ramos de café em fios de ouro sobre cambraia. A cara roupa dos imortais para as cerimônias. Talvez até já em companhia de Gilberto Gil, então possivelmente eleito para a cadeira de número 20, eleição marcada para a semana que vem. No momento há quatro vagas a serem preenchidas até o fim deste ano, nas próximas quintas-feiras.

O modelão, calculado em torno de 70 mil reais, tradição, é pago pela prefeitura do lugar natal do homenageado, ou o Estado, quando o município não tem condições, o que não é bem o caso do Rio de Janeiro. O festeiro Eduardo Paes já está todo ouriçado para isso, com o dinheiro dessa imensa e aberta carteira pública.

Mas Fernanda Montenegro, de alguma forma, já era imortal; assim como, acredito, Gilberto Gil. Lembro também do meu querido amigo imortal (sim, orgulho!), o escritor Ignácio de Loyola Brandão. Imortal, fantástico, genial, ganha cadeira. Mas esses que cito, entre outros que estão lá, já são, já eram muito e bem conhecidos, no Brasil e no exterior. Fico pensando na dificuldade eleitoral de outros escritores e poetas menos conhecidos diante de celebridades como essas, embora certamente tenham referências para pleitear uma vaga. Uma cadeira. E assim passar à eternidade – imortal literata da ABL.

Mas nós, os “mortais”, os simples, creio que no íntimo também queremos todos ser imortais nas variadas formas e sentidos da palavra – quem tende a sobreviver com seus legados através dos tempos, permanecendo na memória de gerações posteriores: vida e ensinamentos imortais; eternos, permanentes, imorredouros, imperecíveis.

Aqui pra mim tenho vários imortais. Mortos, sim, mas inesquecíveis. Alguns ainda vivem inclusive no meu coração e nas minhas lembranças. Você aí também deve ter uma listinha. Falo de pessoas próximas com quem tive o prazer de conviver e de alguma forma até sentir a missão de continuar perpetuando nas intenções às quais eles dedicaram suas vidas, muitas até bem curtas do meu ponto de vista – mais vivessem, muito mais fariam.

Essa pandemia, inclusive, levou abruptamente muitos deles de nosso convívio, e apenas nos consolamos de alguma forma porque deixaram conosco seus legados. Legados os mais variados, como as lutas que empreenderam por nós e pela liberdade. Pela generosidade com que nos trataram. Pelo amor com que nos puseram no mundo e nos criaram. Pela coragem que tiveram diante dos infortúnios, das ameaças sofridas. Pelo pioneirismo com que abriram caminho para que nos tornássemos melhores. Pelos estudos que consumiram suas vidas e que hoje facilitam que nós também de alguma forma busquemos nossa própria imortalidade e reconhecimento, mesmo que este seja apenas para alguns poucos. Mas que estes poucos continuem levando nossos nomes para frente.

Vivemos agora em um espaço de tempo bem louco. Os 15 minutos de celebridade cantados um dia por Andy Warhol foram modificados para instantâneos segundos, minutos, posts, escândalos, polêmicas substituídas continuamente e se evaporando no ar. Registradas, sim, em tempos digitais, onde praticamente todos podem ser encontrados em pesquisas do Google – a mais contemporânea forma de imortalidade. Inclusive do que porventura tenhamos feito de ruim. Aliás, o mundo e o nosso país está cheio desses seres marcados pelo terror.

Os que tanto mal nos fazem serão bem mal lembrados. Eternamente. Passarão para a história como máculas.

Enfim já somos todos imortais, mesmo que sem cadeira numerada. Mesmo com nossas roupinhas simples. Que sejamos infinitos.

MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. Nas livrarias e online, pela Editora e pela Amazon.
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