Querida Marie Claire

In ABCD, Artigo On

Por Guttemberg Guarabyra*

Em São Paulo, residi, faz muitos anos, na Avenida Angélica. Naquela época namorava uma antiga amiga, adorável, que trabalhava no Dama da Noite, um casarão da Rua Maranhão, patrimônio arquitetônico da cidade, construído por Ramos de Azevedo, que velhos amigos transformaram em bar. Com espaçoso quintal e clássica escada de mármore, o imóvel destacava-se no imponente quarteirão, constituindo agradável cenário art-nouveau cravado na região central da cidade. Minha namorada, paquerada de mesa em mesa, servia como garçonete. Todas as noites, sentava-me num canto e só saía com o último freguês. Íamos a pé para casa.

Falei em Marie, mas quero falar mesmo é do apartamento — aliás, não propriamente do apartamento, e sim do telefone grampeado que a gente tinha na sala. No entanto, não resisti ao impulso de descrevê-la, nem à vontade de declarar publicamente a afeição que sentia por ela e o quanto a admirava e a queria. E de revelar ainda a falta que ela faz aqui, em nossa contínua caminhada pela Terra. Hoje torço para que seja verdade tudo o que dizem: que, lá em cima, os corações puros descansam felizes e reencontram os bons amigos. Por você, Marie, sonho que seja verdade.

O aparelho, ainda na era do telefone de discar, permanecia grampeado dia e noite. O pitoresco no caso é que nós é que éramos os grampeadores. Involuntários, mas grampeadores. Bastava que erguêssemos o fone do gancho para ouvir mais um capítulo da história que se desenrolava do outro lado da linha. Um engenheiro grego, morando no Brasil havia pouco tempo, tentava uma maneira de reunir meios para construir o protótipo de um invento, que, segundo o que ouvíamos, era revolucionário. Tratava-se de uma nova turbina hidráulica para geração de eletricidade.

Para seguir a novela incógnitos tínhamos que erguer o telefone do gancho o mais discretamente possível. Numa das primeiras vezes em que aconteceu, disse um “alô”, e a conversa do outro lado foi imediatamente interrompida. O grego, com forte sotaque e razoável conhecimento do português, imediatamente alertou o interlocutor: “Linha crrrruçada!”, e resolveu desligar e refazer a chamada. Só que não adiantava, as duas linhas não se desgrudavam nunca. Com o tempo, fui percebendo que, se permanecesse calado, o inventor não percebia que a conversa estava sendo bisbilhotada. Não me tomem por mal-educado, mas quando notei que negociava a turbina com o Exército Brasileiro em plena ditadura militar, interessei-me pelo enredo.

A conversa avançava a cada dia mais interessante. Certa vez, interceptei o papo entre o estrangeiro e a mulher de um coronel. Ela o convidava para jantar em sua casa, onde estariam reunidos outros oficiais e pessoas importantes que, sem dúvida alguma, segundo ela, se interessariam pelo invento. Uma semana depois, pude acompanhar o engenheiro narrando a um amigo de confiança como havia transcorrido o jantar. Ele jurava que tudo fora uma armação com o propósito de fazer com que entregasse o projeto para os militares. A parte mais engraçada foi quando deu a entender que a mulher do coronel até havia se insinuado para ele. E que se declarara aborrecida por ele ter comparecido ao encontro sem a descrição impressa do projeto. Nada bobo, confidenciava ao amigo: “Se eu entregar, eles vão se apoderar de tudo e me dispensar!”. Pelo que entendi, ele propunha que o Exército lhe fornecesse pessoal técnico e material para que ele mesmo comandasse a confecção do protótipo da turbina. O grande avanço era que a tecnologia inédita seria capaz de fazer uma turbina tão fina, leve e de fácil manejo que poderia gerar muitos quilowatts alimentada meramente por um ribeirão simples, de pouco declive e sem grande volume de água.

Como tive que me mudar, acabei não sabendo se nosso Onassis, ou Papadopoulos, conseguiu construir a tal turbina nem se o Exército conseguir obter o projeto inovador. No dia da partida, tentei grampear sem sucesso mais um pouco da história que, afinal, ficara fazendo parte da casa e de minha vida. Às vezes passava diante do prédio e quase perguntava ao porteiro se o apartamento ainda estava sem novo hóspede, e se não permitiria que subisse para aproveitar mais um trecho da história — que, certamente, continuava a se desenrolar. Hoje, com tantos grampos causando baixas por aí, o caso sempre me vem à cabeça. Já pensei até em transcrevê-lo para teatro, dando-lhe um desfecho. Por ora compõe apenas parte de minhas lembranças — que incluem a saudade dos passos pesados sob a luz das estrelas enquanto seguia ladeira abaixo ancorado no perfume e na companhia querida de Marie Claire.

Música do dia

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
  • O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
  • Esta crônica, por exemplo, “Querida Marie Claire”, está nas páginas 199, 200 e 201 dessa publicação imperdível, do mesmo nome.
  • Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas, em conclusão, o Diário Popular.

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