Guttemberg Guarabyra
Foi a marcha mais dolorosa de minha ainda pouca existência.
—
Esquentar os tambores, no sentido real, antes de ter se transformado em expressão que significa que algo está prestes a começar, era acender alguma chama e aproximar o couro dos tamborins, dos surdos e das caixas para aquecê-los, e, sob a temperatura alta, distendê-los de modo que o som das batidas mudassem de tom, e finalmente fossem considerados afinados.
Em Bom Jesus da Lapa, como integrante da bateria do desfile do Sete de Setembro do Colégio Bom Jesus, famoso GêBêJota, cumpri essa rotina diversas vezes durante os ensaios para o grande dia do desfile em homenagem ao Dia da Pátria.
Mandava bem no tarol, junto com Manu e o irmão, que agora me foge o nome. É ruim quando se fala de velhos tempos, velhos amigos, e não lembramos mais dos nomes. Peço desculpas aos demais integrantes, cujos rostos vejo nítidos em minha mente nesse momento, e os nomes quase me vêm à língua.
Na manhã do desfile, estávamos afinados. Nós, os couros dos instrumentos, a coordenação dos arranjos de percussão (inovaríamos com uma paradinha, muito antes da bateria da Padre Miguel) e estávamos confiantes.
O clima só ficou meio baixo astral quando soubemos que …. (ainda vou lembrar o nome, você do sorriso simpático cheio de dentes, cuja face vejo projetada nitidamente em minha mente agora) … o tocador de bumbo faltaria ao desfile. Caíra adoentado.
A missão de executar o bumbo foi repassada para mim.
Sentiria falta do tarol, mas que fazer. Tudo por um desfile brilhante e superior ao do colégio concorrente.
Na área de concentração, numa rua próxima à praça principal, o colégio se alinhou.
Meninas de outras classes, que jamais imaginara tão garbosas, com as roupas incrivelmente bem ajustadas, muito bem passadas, emitiam outro brilho. Que suingue.
Um, dois, chegou nossa vez.
Mal andamos cinquenta metros o couro do bumbo que eu executava com o máximo de orgulho e porte imponente, rompeu-se.
Quem sabe um mínimo sobre como o som de um conjunto de bateria deve soar, pode calcular o desastre.
Sem a base grave, a retumbância do conjunto fica comprometida.
Isso, no aspecto geral.
No particular, imaginem a humilhação do tocador de bumbo desfilar carregando aquele enorme tambor circular vitimado pelo extenso rombo ornado com uma infeliz aba de couro dependurada, desenfeitando tudo.
Foi a marcha mais dolorosa de minha ainda pouca existência.
Fixei o olhar no chão de paralelepípedos. Esta também é uma imagem que não me sai.
E se estava de olhos fixos no chão, conforme vejo em minhas lembranças, é porque desfilava cabisbaixo.
Que humilhação.
Tinha, antes da tragédia, até, confesso, a esperança de que Dedé, mesmo desfilando no colégio rival, pudesse, quem sabe, pousar aqueles olhos verdes em mim.
Não há de ser nada. Outros Sete de Setembro vieram. E outras histórias e paixões se aninharam na minha casa querida de lembranças.
E outros virão. Torço apenas para que, com ou sem frustrações particulares, para a Nação o que importa é que a data seja sempre acompanhada de muito som bonito, de grandes desfiles garbosos e verdadeiramente patrióticos, e de olhos, verdes ou não, do bem.
—-
Música do dia
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.
