Por Guttemberg Guarabyra*
Caminhei para a porta. Em uma das mãos levava a mala e, na outra, empunhava a chave. Pela primeira vez após ter abandonado o sítio em Itapecerica da Serra e a vida de dez anos no campo, saía em viagem. Abri a porta, depositei a mala no chão do hall do elevador, meti a chave na fechadura e tranquei o apartamento. Quando o elevador chegou não consegui entrar. Parecia que algo de errado estava acontecendo. Teria esquecido algo?
Conferi se trazia comigo passagens e documentos. Relembrei os itens da bagagem. Nada parecia faltar. Só após ter entrado no elevador percebi o que ocorria de estranho: eu estava desobrigado de dar instruções para que o casal de caseiros as seguisse durante minha ausência, estava livre de verificar se o estoque de remédios veterinários da criação estava completo e livre do hábito de, logo após ter chegado a algum destino, telefonar sem demora para saber se os medicamentos haviam sido ministrados no horário, se o ganso estava bem, se o casco da égua estava em melhor estado.
Até aquele momento não tinha ciência do tanto que a mudança de endereço ia modificar minha vida. Claro que, como adoro animais, a ponto de criar mais de cinquenta, sendo todos de estimação, incluindo galinhas e gansos, que muita gente cria com objetivos nada favoráveis a eles, sentia a falta de todos. Sentia saudades da arara, do cágado que eu deixava solto na lagoa e dos gansos, que também viviam se esgoelando lagoa afora, mas que tinham de ser recolhidos todo final de tarde a fim de evitar que fossem conquistados pelos amigos dos gansos alheios. Doía-me também ter deixado as duas éguas e os oito cachorros, mas a sensação de estar liberado para viajar apenas com o gesto de empurrar uma porta e trancá-la, era indescritível.
Perdi a conta do número de vezes que telefonei, de Manaus, Fortaleza, Porto Alegre, apenas para confirmar com o caseiro, verdadeiro desfrutador daquele paraíso, se os cachorrinhos haviam nascido bem, se havia pingado as gotinhas de limão nas narinas dos gansos (santo remédio) e inúmeros outros lembretes.
Além da preocupação constante, a conta de interurbanos era astronômica. Dispendia dinheiro, devotamento, e pouco aproveitava da vida no campo, pois minha profissão me obriga a estar ausente de casa a maior parte do tempo cumprindo a missão e paixão de cantar — ofício que, se tiver de abandonar um dia, será como abandonar a mim mesmo. Com as viagens cada vez mais constantes, a vida no campo foi ficando impraticável. Para tomar um avião às oito, tinha de acordar às quatro ou menos, visto que o aeroporto distava pelo menos duas horas do sítio. Muitas vezes ao ligar o carro e ouvir a despedida barulhenta dos bichos, eu quis ser o caseiro a usufruir daquela vida prazerosa a despachar o patrão com um adeusinho desejando que ele trabalhasse bastante para manter os pagamentos em dia e, assim, garantir a paz e a felicidade para si, para os filhos e para aquela arca de Noé incrustada em Itapecerica da Serra.
Quando decidi mudar de vida, tive ainda de esperar mais de ano para realizar o projeto. Durante esse tempo cuidei de distribuir criteriosamente a criação, dando um destino adequado a cada animal. Tendo resolvido essa parte, providenciei que os caseiros recebessem uma boa indenização pelos serviços prestados e ajudei-os a arrumar um novo emprego. As preocupações com essas providências ainda se refletiriam naquele instante solitário em que o elevador descia prédio abaixo.
De vez em quando, porém, bate-me uma saudade mortal da paz do sítio. Da quietude profunda e inspiradora que só uma noite escura à beira de um lago profuso do coaxar de sapos pode proporcionar. Lembranças carinhosas de minhas conversas com Skylab e Magrela, meu casal predileto de cães. Homenageei Skylab, depois de sua morte escrevendo um livro, O outro lado do mundo, em que é protagonista. Tenho saudade de quase tudo daquela vida. Só não gosto mesmo é de lembrar das contas elevadas, da correria e das responsabilidades que era obrigado a cumprir.
Mas a vida é assim mesmo. Estamos constantemente diante de uma decisão, de uma encruzilhada. Quem sabe eu não tome o caminho de volta? Quem pode afirmar que jamais o percorrerei novamente? Quem pode dizer que isso jamais se repetirá? Talvez seja em razão disso que muitas de minhas canções tratam de perguntas sem respostas. O pior é que, quando a gente pensa que chegou a algum destino, olha a mala no chão e percebe que ele está sempre por vir. Deve ser por isso que o verbo chegar às vezes tem o significado de ir embora. Assim como todo fim nada mais é do que recomeçar.
Música do dia:
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
- O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
- Esta crônica, por exemplo, “Perguntas sem respostas” , está nas páginas 193, 194 e 195 dessa publicação imperdível, do mesmo nome.
- Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas, em conclusão, o Diário Popular.