Ode a um lírio que vi fenecer

In ABCD, Artigo On
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Por Guttemberg Guarabyra*

Nada contra o casamento. Mas conservar uma união que não une mais nada é uma distorção do sentido do casamento. Uma aberração inaceitável. A não ser que nosso lado coala, aquele pequeno marsupial australiano conhecido por sua imensa compaixão, fale mais alto e a gente acabe aturando o cotidiano amargurado só por não querer magoar os filhos, ou o cônjuge antes tão amado, ou ainda – aí num ato exclusivamente humano que nem mesmo o mais compadecido dos coalas é capaz de realizar – por sentir piedade de si mesmo. Fora isso, acho que o melhor, no caso de um casamento fracassado, é encarar a realidade e dar uma de Vinícius de Moraes, não só se conscientizando de que a vida é uma só, como também partindo para outra.

Foi pensando assim que, após a separação, instalei-me num até que vasto apartamento de dois quartos em Copacabana. Não durou muito até que surgisse a primeira candidata a preencher o imenso vazio deixado pela relação que havia terminado. Leila Cravo, na verdade, ressurgia em minha vida, pois, ao namorar Denise Dumont, muitos anos antes, ela já estava presente como sua melhor amiga. Reencontrei Leila estrelando um show da moda, numa boate do célebre empresário da noite, Ricardo Amaral.

Por mais ou menos umas duas semanas, o namoro transcorreu num clima de paz e normalidade, desde que visto pelo ângulo de paz e normalidade do modo de viver do carioca. Ela chegava ao apartamento quase de manhã, ainda na pele de vedete, trajando um ofuscante vestido abarrotado de lantejoulas e tendo o rosto repleto de purpurinas. Tomávamos uma última cerveja e partíamos para o melhor da festa. Mas a alegria durou pouco. Depois de alguns dias em que se limitava a telefonar dizendo que não poderia aparecer, soube que havia sido conquistada por Chico Anísio. Daí para frente comecei a reparar que Chico, além de engraçado, era um garanhão com um histórico respeitável. Fiquei magoado, mas confesso que me senti plenamente vingado ao vê-lo esbarrar em Zélia Cardoso de Mello.

Depois dessa, traumatizado, dei um tempo nas conquistas e comecei a controlar minha impaciência em conseguir uma nova companheira. Optei por viver uma vida solitária, curtindo o apartamento aconchegante. Até o dia em que encontrei o compositor João Donato num bar. Como estava tarde e ele morava distante, acabei convidando-o a dormir no apartamento. No dia seguinte, fui tratar da vida e deixei-o por lá com aquele jeitão simpático, mas muito esquisito. No terceiro dia ainda não havia saído de lá. No quarto, devido à maneira como me tratava, comecei a desconfiar que João supunha que eu estava disposto a permanecer em minha casa durante mais tempo do que minha vontade de ficar sozinho permitia. Além do mais, comecei a achar que ele confundia minha hospitalidade. Consegui livrar-me da situação constrangedora graças a um telefonema do compositor Sérgio Ricardo convidando-me para um papo em sua casa. Donato animou-se em ir junto. Imediatamente tracei uma estratégia para transferir o hóspede. A estratégia deu certo e pude, enfim, voltar à vida feliz de novo-solteiro. Anos mais tarde, surpreendi João, às 4 da tarde, já envolto em nuvens etéreas, num bar barulhento e abarrotado de gente no centro do Rio. Abri um sorriso e cumprimentei o parceiro de longe, ao que ele, inesperadamente, respondeu-me berrando “Boneca! Boneca!”, sem parar, chamando a atenção de todos para mim, que tratei de cair fora às gargalhadas e com minhas antigas suspeitas confirmadas.

Na casa de Sérgio Ricardo, no entanto, João sentou-se ao piano e em poucos minutos fizemos uma canção que, de tão direita, logo seria gravada por Gilberto Gil. Ao retornar para casa, embalado por haver lidado pela primeira vez com a poesia depois do fim do casamento, acendi as luzes e percebi pela primeira vez as purpurinas caídas do rosto de Leila brilhando em cantinhos de onde era impossível retirá-las. Imediatamente passei a mão no violão e compus o melhor samba-canção que já consegui escrever: “Quando tu sais por aí / esquecendo-te um pouco de mim / eu aqui lembro mais / lembro mais de você / pois em cada canto da casa / debaixo dos móveis / nas fendas dos tacos / brilham estrelas purpurinas / que tu deixaste cair / Por isso então bailarina / não posso afastar-te de mim / cintila por toda parte o teu rosto carmim”. O samba-canção ficou sendo uma espécie de “Ode A Um Lírio Que Vi Fenecer”, do poeta José P. di Cavalcanti Jr, visto que, poucas semanas mais tarde, resignado, mas ao mesmo tempo muito feliz, eu voltaria para casa depois de fazer as pazes com minha ex-mulher.

Músicas do dia:

A primeira

A segunda

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
  • O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
  • Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas, em conclusão, o Diário Popular.

 

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