O Sutiã de La Bengell

In ABCD, Artigo On
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Por Guttemberg Guarabyra*

Na minha idade, muita gente começa a se questionar se está ficando velho. E é claro que está. Por mais conservado que esteja, sem dor nas juntas, com o fígado tinindo e arriscando vez por outra noitadas nos bairros boêmios, não pode mais se dizer jovem. A não ser que tenha descoberto o segredo de um certo americano, segundo notícia que correu anos atrás, que, abduzido por alienígenas durante uma semana, reapareceu muitos anos mais novo.

Denise Dumont, a atriz brasileira que vive nos Estados Unidos, deve ter passado também por algo parecido, pois que, a cada vez que a vejo, parece transmitir mais luz e juventude. Mas é evidente que sua beleza inextinguível nada tem a ver com milagre alienígena. Moldada ao sol de Ipanema e ao luar do Leblon, tudo lhe é natural e não precisa ligar pra isso.

Eu idem não ligo quando percebo os traços da idade redesenhando dia a dia meu cada vez mais idoso semblante. Já meu parceiro, Sá, quando perguntei se ainda lembrava de Saint Clair Lopes, ator da antiga Rádio Nacional, caiu na gargalhada e exclamou: “Eu não tenho essa idade!”. Aí quem riu fui eu. Não é tão fácil esconder a realidade. Basta lembrar que depois dos 60, pela lei, todos somos oficialmente idosos. O pior é que o qualificativo malvado faz pensar que a pessoa está de partida. E não adianta explicar que a palavra vem de idade, idadoso, porque o sentido perverso não desgruda.

Outro despistamento que vi muita gente usar é responder que soma uma enorme quantidade de anos de trabalho porque começou cedo, e não porque já está idoso. Mas quando ouve o funcionário do aeroporto anunciando que pessoas com dificuldade de locomoção, crianças e idosos podem embarcar primeiro, não hesita em aproveitar a prerrogativa.

Mas eu comecei mesmo muito cedo. Tanto que já era atração digna de nota quando fui convidado para fazer parte do seleto elenco de astros da época que faria o show de inauguração do Teatro Bandeirantes, em São Paulo, em 1968. Apresentei-me acompanhado de orquestra sob regência do maestro Oscar Castro Neves. Como Oscar, além de arranjador e produtor do meu primeiro disco, era também grande amigo, creio que a central de reservas encarregada da hospedagem dos artistas, ao se ver em apuros com o número insuficiente de vagas nos hotéis conveniados, não hesitou em nos registrar num mesmo quarto, no lendário Hotel Danúbio.

Hospedei-me primeiro. Logo depois ele chegava. Foi aí que a coisa pegou. Estava acompanhado por ninguém menos que a Brigitte Bardot nacional de nossa época. A desejadíssima Norma Bengell. Fiquei constrangido, cumprimentei os dois, dei uma desculpa e saí para dar umas voltas. Quando retornei já haviam ido embora com malas e tudo. Pelos indícios, creio (…), haviam apenas tomado um banho e partido em busca de acomodação mais apropriada para um casal. Foi aí que, pasmado, notei que La Bengell esquecera sobre a cômoda um sutiã. Como não a encontrei mais durante as festividades da inauguração, levei-o comigo na volta para casa, no histórico Solar da Fossa, no Rio, muito bem descrito e historiado no livro de Toninho Vaz. Leiam.

Dias depois, já em casa, comentei com um amigo, vizinho no casarão, sobre o sutiã que havia trazido da pauliceia. A notícia logo se espalhou pela hospedaria onde morava a fauna que faria explodir a cultura nacional nos anos seguintes, que incluía desde Gal a Tim Maia, passando por atrizes, fotógrafos, futuros grandes cineastas e muito mais. A novidade provocou uma verdadeira romaria para vê-lo. A peregrinação ao meu quarto cresceu tanto que resolvi expor o sutiã no alto de uma parede, de modo que todos pudessem apreciá-lo como um santo num altar.

Um belo dia, porém, o objeto de culto sumiu. Tinham roubado o sutiã de La Bengell.

Jamais tive notícias dele ou mínima pista de seu paradeiro. Resta torcer para que o autor da heresia um dia se arrependa e use as redes sociais, que antes não existiam, para confessar publicamente o pecado. Se o devolver, terá não só meu perdão como o de todos os idosos ou não que saibam o quanto a diva dona daquele santo sutiã foi amada e admirada, e como ainda mora no peito de muitos brasileiros. Êpa.

Música do dia:

 

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
  • O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
  • Esta crônica, por exemplo, “O sutiã de La Bengell”, está nas páginas 209 e 210 dessa publicação imperdível, do mesmo nome.
  • Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas o Diário Popular.

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