O roubo do jacu

In ABCD, Artigo On
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Foto do vapor Benjamim Guimarães: Andrea D'Amato.

Por Guttemberg Guarabyra*

No fim do ano começava a estação das águas e o rio enchia. Os vapores do São Francisco, nessa época, desciam o rio mais rápido, acelerados pela correnteza impulsionada pelo grande volume de água decorrente do período das chuvas. Na subida, porém, pelo mesmo motivo, penavam para vencer a correnteza contrária e levavam mais tempo para concluir a viagem. Eu preferia viajar subindo na época da cheia e em qualquer direção na seca, quando os vapores encalhavam constantemente, fazendo com que a viagem durasse muito mais, pois o trajeto era tão agradável que dava pena quando chegava ao fim. Ao saltarmos da embarcação, descia arrastado pelas mãos dos irmãos mais velhos, olhando para trás constantemente, querendo a todo custo não me afastar do vapor e dos dias maravilhosos que havia passado ali.

Das lembranças dessas viagens, jamais apaguei da memória a cena do enterro de um menino que morrera a bordo, na segunda classe, e de como, sem haver caixão, o enterraram enrolado num cobertor e acondicionado dentro de um grande saco de plástico transparente. Senti de perto a imensa dor dos pais ao vê-los na sacada do barco observando o barco se afastar daquele perdido porto de lenha e do barranco em que ficaria para sempre o desventurado filho. Voltariam ali algum dia? Poderiam homenageá-lo ainda? Levar-lhe flores?

No entanto, a lembrança mais persistente ainda é a das revoadas dos jacus nas árvores ribeirinhas. Enchiam as copas às centenas, com alegria, barulho, algazarra. Eram tantos que fica difícil acreditar que estejam ameaçados de extinção. Não sei por que cargas d’água uma dessas chamadas aves galiformes foi parar em nossa casa no tempo em que moramos em Niterói (temo que essa prática de subtraí-las de seu ambiente natural seja uma das causas de seu desaparecimento. Se fosse hoje, jamais concordaria que fossem domesticadas. Ainda mais em minha casa).

Era bem novinho o jacu. Cresceu em nosso quintal e, surpreendentemente, transformou-se num obstinado defensor dos limites de nosso quintal. Não havia jeito de ultrapassar a fronteira de nosso portão desacompanhado de um dos moradores, sem se arriscar a tomar bicadas dolorosas nos tornozelos. O bichinho, porém, sentia falta da liberdade e tentava fugir assim que as penas das asas cresciam a ponto de possibilitar um voo. Era triste vê-lo contido enquanto suas asas eram novamente aparadas. Era uma cena que detestava ver, apesar de minha atitude sempre provocar críticas dos manos mais velhos, que a achavam pouco digna de um verdadeiro homem — na educação machista, aprende-se que o importante é ser insensível. Deve ser por isso que o choro de um homem feito é a cena mais profunda de tristeza. Em cada choro macho, sempre adivinho o desmonte de uma represa de sentimentos acumulados.

Num trágico dia, uma de minhas irmãs pilhou o jacu fugindo por cima da trepadeira de maracujás e o conteve de mau jeito, fraturando-lhe uma das patas. Nos dias seguintes, a avezinha adoeceu e, mesmo com a perna devidamente entalada (uma de minhas irmãs de criação era enfermeira), adveio a gangrena. Num final de semana, minha mana chegou em casa decidida a realizar uma cirurgia e amputar a pata do jacu. Era a única maneira de salvá-lo da morte. Esterilizou uma mesa, arrumou nela frascos de anestesia e demais apetrechos e resolveu o assunto. A operação foi um sucesso. Poucas semanas depois, o paciente já arriscava uns passos, desta feita equilibrando-se também com os movimentos das asas. Pouco tempo depois já havia retomado, para a alegria de todos, e de maneira perfeita, o posto de severo guardião de nosso lar.

Mas a história desse jacu ficaria incompleta se não revelasse como nós o fizemos de ajudante de trapaça no jogo de bolas de gude. Tudo começou quando eu e meu irmão jogávamos no quintal e uma das bolas veio lentamente se aproximando do jacu. Ele, inesperadamente, deu um salto lépido na direção dela e imediatamente a engoliu. Ficamos preocupados e, assim que a mana enfermeira chegou do trabalho, corremos a relatar o acontecido. Após examiná-lo detidamente, achou que se encontrava bem. Recomendou apenas que o observássemos atentamente no dia seguinte, a ver se conseguia “soltar” a bola naturalmente.

Foi exatamente o que aconteceu. Depois de limparmos a bolinha sob o jato de água da pia do tanque, voltamos a jogar em paz no quintal. Só que o jacu continuou a engolir nossas bolas. Bastava que o gude se aproximasse à distância de um salto que ele a engolia. E novamente tínhamos de esperar a “devolução”. Tantas vezes isso se repetiu que acabamos por arquitetar um golpe infame. Passamos a convidar os amigos a jogar em nosso quintal. E, naturalmente, a jogar as bolas dos adversários para perto do jacu. Não falhava uma vez. No dia seguinte, era só esperar para completar a manobra desonesta. Não me lembro de quantas bolas ganhamos assim, mas recordo perfeitamente o dia em que minha mãe percebeu a malandragem e nos obrigou a devolvê-las. Passamos por um vexame e tanto. Enquanto durou o ardil, no entanto, nos divertimos muito. E o jacu se tornou um inesquecível colega de quadrilha.

Apesar das consequências, que só mais tarde me doeria na consciência, de tirar um ser desses de seu hábitat natural, não há dúvida de que foi imensamente gratificante ter convivido com um animal ao mesmo tempo doméstico e selvagem e tão companheiro e inteligente. Hoje, quando volto ao São Francisco e não encontro sinal dos jacus nem dos velhos vapores, não reconheço em quase nada aquele mundo. De coração partido, chego a achar que jamais existiu.

Música do dia

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
  • O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
  • Esta crônica, por exemplo, “O roubodo jacu” , está nas páginas 183, 184 e 185 dessa publicação imperdível, do mesmo nome.
  • Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas, em conclusão, o Diário Popular.

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