O Dia do Inacreditável

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Legenda de Guarabyra: Minha prima Nerinha enviou-me. Foto do barco a que me refiro no texto. O casarão de telhado grande, à esquerda, é berço da família Guarabyra.
  • Guttemberg Guarabyra

A festa que pretende reunir anualmente a família Guarabyra, oriunda da Ilha do Governador, no Rio, e que não acontece faz dois anos, em razão da pandemia, transcorria plena de mata-saudades gerais, quando me aproximei de um de meus primos mais queridos e o convidei para apreciar o mar da praia do Zumbi, que ladeia o clube em que se dava o encontro e que fazia muitos anos não via.

Que tristeza. Foi difícil acreditar que aquelas águas escuras e sujas em que ondulavam imundícies de toda espécie fossem as mesmas em que mergulhávamos na infância para apreciar de perto estrelas do mar, e lambíamos o sal dos beiços ao emergirmos molhados de água saudável e pura.

Incrédulo, confesso que senti novamente água salgada a correr por meu rosto. Desta vez, porém, feita de lágrimas. Como foi possível destruir-se uma baía tão rica de tudo, fauna e flora, e de água transparente, em tão pouco tempo.

Na ruazinha estreita da orla, por onde antigamente passavam bondes, divisamos o bar em que meu irmão mais velho e o primo que me acompanhava, inseparáveis amigos, passavam intermináveis tardes. Foi aí que me revelou o segredo.

— “Todo mundo pensa que a gente se escondia ali para beber. Ledo engano. A gente ia lá para beber leite. Conversar e beber leite”.

Era o Dia do Inacreditável. Primeiro, a constatação do lixo que escureceu minhas lembranças antes translúcidas e plenas de brisa perfumada do mar da Ilha. Depois a revelação de que os primos, adultos, não iam ao bar mamar cerveja. Mas leite puro.

Saí de lá, e, no táxi de volta, passei o encontro na memória. Vi o pequeno barco que, sem que ninguém jamais perguntasse a quem pertencia, permaneceu ancorado naquela praia por muitos anos, e que nos servia de descanso durante o nado nas águas transparentes. E a mente passou a viajar feito aquela série O Mundo Visto de Cima, e passei a ver a humanidade lá do alto. E eis que ela subitamente havia se transmutado num enorme campo de bezerros chorões mamando leite em queijos, manteiga, doces.

A seiva pura de tantas mães animais mundo afora, naquele momento, naquele táxi, me surgiu como a única coisa que unia a humanidade. Só faltava que a consequência desse desvario se espalhasse planeta afora e a gente voltasse a ser mais criança, e a praia do Zumbi se enchesse de infância e voltasse ao tempo em que suas águas nos brindavam com o lamber de beiços temperados do sal sagrado da Baía da Guanabara.

Música do dia.

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.

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