Lampião da energia

In Artigo On
  • Guttemberg Guarabyra

Não deixava de ter sua graça. A pequena chama amarela rodopiava à menor corrente de ar, fazendo com que rodopiassem também com ela as sombras no quarto.

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Impossível pensar-se hoje num mundo sem os benefícios da energia elétrica.

Como já vivi na hoje inimaginável situação de morar em cidades onde a energia elétrica era oferecida em doses homeopáticas, sei bem o que é estudar à luz de candeeiros e acordar tossindo fumaça de querosene.

Em Xique Xique, criança, meu pai levou-me para visitar o controle da usina. Por ‘usina’ entenda-se um monstruoso gerador de eletricidade abastecido com óleo diesel que, das seis da tarde às onze e meia da noite, deixava escapar a preciosa corrente de elétrons até as casas, ruas, clubes, igrejas.

Fiquei encantado quando o moço do controle me falou que ia acender a iluminação pública da rua em que eu morava.

Fiquei atento. Ele virou uma chave e um luz indicadora acendeu no painel. As luzes dos postes da J. J. Seabra, naquele momento piscavam relutantes, diminuíam e aumentavam de intensidade até que se firmavam. Fracas, amareladas, mas estáveis.

Tudo isso eu imaginava acontecendo como se estivesse lá na frente de casa, assistindo ao espetáculo da chegada da luz nos postes, fato que flagrava constantemente.

Minhas irmãs mais velhas corriam a passar a roupa. Como o ferro de passar consumia muita energia, tinha que ser ligado unicamente.

Passadas as mudas de roupa, era retirado da tomada imediatamente. Aí sim, podia-se ligar o rádio, o toca-discos (quem tivesse), ouvir músicas, novelas, notícias.

Mas nem sempre, e por vários motivos que iam desde chuvas que tinham deixado a cidade isolada em virtude de alagamentos nas estradas, ou mesmo por falta de verba da prefeitura ou qualquer outro motivo de atraso, nem sempre o combustível que alimentava a usina estava disponível.

Aí voltávamos aos candieiros, às lanternas vigiando os caminhos e evitando tropeços nas calçadas.

Já os ferros de passar roupas à brasa, mesmo durante as noites servidas pela energia elétrica, raramente eram abandonados.

Abria-se a tampa, jogava-se no interior as brasas do fogão à lenha, tapava-se.

Com uma das mãos segurava-se o artefato pesado firmemente e, num movimento vigoroso de pêndulo, balançava-se o ferro para frente e para trás de modo que o ar entrando em velocidade pela pequena abertura traseira se movimentasse atravessando as brasas em direção à chaminé da dianteira.

E era esse ar que avermelhava as brasas, esquentava o ferro, permitia que evaporasse a água espargida nos tecidos, alisava-os, enfim, como resultado, tornava as roupas bonitas.

E lá íamos nós para a igreja exibindo a roupa adequada e muito bem passada de domingo.

Na igreja, se havia energia elétrica, as lâmpadas faziam seu serviço, iluminando o púlpito e a bíblia lida por meu pai pastor batista.

Se faltava, lá ia o irmão diácono subir num dos bancos, retirar de onde estava pendurada, numa das vigas de sustentação do telhado, a pesada Petromax.

Com a abóbada de vidro montada sobre uma base metálica, que formava o depósito de querosene, o lampião da alemã Petromax, à pressão e lâmpada de camisa, era baixado, abastecido, bombeado, aceso, e emitia uma luz impressionantemente branca, bem mais forte do que a das lâmpadas elétricas alimentadas pela corrente do gerador diesel.

Sorte de quem tinha uma dessas em casa. Na minha, a luz alternativa era a do candeeiro.

Não deixava de ter sua graça. A pequena chama amarela rodopiava à menor corrente de ar, fazendo com que rodopiassem também com ela as sombras no quarto.

A gente lia até o sono dominar, soprava para apagar, dormia no silencio das cidades sem eletricidade, sem ruído de motor de geladeira, televisão esquecida ligada e outros sons, e acordava tossindo querosene.

Nem tudo é perfeito.

 

Música do dia.

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.

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