Por Guttemberg Guarabyra*
Na minha infância, em um mesmo dia, fiquei conhecendo o trem de ferro e a luz elétrica na madrugada. As cenas ainda permanecem nítidas em minha cabeça. O dia já havia sido fantástico dentro de um trem cortando o sertão numa velocidade alucinante. Nas curvas para o lado de minha janela, conseguia ver a máquina preta arrastando nos ferros a grande fileira de vagões. A fumaça negra lançada pela chaminé durante o dia (não era à toa que chamavam a locomotiva de maria-fumaça) transformava-se de noite em um jato de fagulhas vermelhas. Aprendi que era mau negócio expor os olhos abertos quando colocava a cara ao vento para fora da janela. Logo um cisco do carvão incinerado caía-me nos olhos, o que obrigava meus velhos a soprar o olho irritado.
A essa lembrança junta-se ainda a de uma fazenda de laranjas onde o trem descansava. Não havia nenhuma cidade por perto. O trem cortava o imenso laranjal, no caminho entre Pirapora e Montes Claros, e o maquinista parava para proporcionar o recreio que os passageiros já sabiam certo: descer para bater um papo enquanto recolhiam frutas à vontade. Nunca entendi aquela pilhagem consentida à qual assistiria outras vezes mais tarde. Depois do passeio, os viajantes ficavam mais falantes, conhecidos, tornando-se íntimos ao sabor das laranjas que iam chupando. Como o trem jamais chegava na hora, nunca pude calcular se aquilo atrasava ou não a viagem – o que era muito diferente dos habituais descarrilamentos, que exigiam demorado socorro e que realmente alteravam os horários e desesperavam muita gente que tinha baldeação marcada.
Uma vez, eu, minha mãe e um irmão estivemos nessa desagradável situação. Perdemos a baldeação em Belo Horizonte, numa viagem para o Rio de Janeiro, e tivemos de nos hospedar por uma noite na capital mineira. Apavorados e com o dinheiro contadinho, pernoitamos em um hotel de terceira perto da ferroviária. Minha mãe, Cecy, inquieta no hotel ordinário, passou a noite torcendo para amanhecer logo. Foi um alívio quando nos vimos novamente em um trem, prosseguindo a viagem.
Mas estou me esquecendo de contar da luz elétrica na madrugada. Até a data em que pernoitamos pela primeira vez num hotelzinho em Montes Claros, para continuar viagem na manhã seguinte para Belo Horizonte, jamais havia presenciado o brilho de uma lâmpada elétrica depois das onze da noite, horário em que a usina elétrica deligava os geradores e a distribuição de energia cessava. Dessa forma, as noites altas em minha cidade pequena do sertão eram feitas de sussurros. Acordava de madrugada e só havia a escuridão voraz, sem nenhum traço de luminosidade além da luz mortiça do candeeiro. Não havia sequer a vibração, mesmo que distante, da eletricidade em forma de rádio ligado ou réstia da iluminação pública que penetrasse pelas janelas. O que havia era vento, galos e o temível alfaiate, pássaro noturno que, segundo dizem, quando voa repetidas vezes por cima de um telhado, é prenúncio de morte certa naquela casa.
Sendo assim, jamais acreditei que pudesse existir luz a noite inteira, até aquela noite em que meus pais, que dormiam num aposento contíguo, no hotel em Montes Claros, acordaram assustados, no meio da noite, com o ruído vindo de meu quarto. Correram para lá e depararam com uma criança abobada, extasiada, ligando e desligando o interruptor, mal conseguindo acreditar que aquilo fosse verdade: havia luz dia e noite!
Hoje, as descobertas sensacionais da infância são bem diferentes daquelas. A luz elétrica dia e noite é coisa corriqueira, e as linhas de trens de passageiros foram quase todas extintas e substituídas por ônibus e aviões. Os ônibus, sem carro-restaurante, locomotiva e a fila de vagões, não têm a mesma graça. Já os aviões trazem a paisagem maravilhosa acima das nuvens, mas, para mim, ainda fica faltando a gente abrir a janela e colocar o rosto para fora. Na verdade, confesso que pouco sei das emoções espantosas que povoam a vida da criança moderna. De qualquer maneira, espero que sejam inesquecíveis e que provoquem euforia igual à que senti ao ver a primeira lâmpada brilhando de madrugada e a primeira máquina barulhenta deslocando-se pelo sertão jogando fagulhas e recordações que, para sempre, ainda turbam minha memória, mesmo nas noites jamais escuras da cidade grande.
Música do dia
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
- O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
- Esta crônica, por exemplo, “Emoções inesquecíveis” , está nas páginas 99 e 100 dessa publicação imperdível, do mesmo nome.
- Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas, em conclusão, o Diário Popular.