Por Guttemberg Guarabyra*
A paixão é uma doença malvada. Joana sabia muito bem disso e já identificava na filha adolescente, amuada no quarto, os mesmos sintomas que ela própria já apresentara antes, há tanto tempo… Tentou abrir a porta. Encontrou-a trancada. Bateu bem devagar. Nenhuma resposta. Enfim, chamou-a: “Taís…”. Nem um som sequer. Voltou para a sala e pôs-se a arrumar os livros que a filha havia largado sobre a mesa depois do telefonema que causara toda a crise e a fuga para o quarto. Notou que ela deixara ali o inseparável diário. Por um momento sentiu-se tentada a invadir a privacidade da menina, lendo-o. Mas o desejo não durou mais que um átimo; jamais seria capaz de fazer tal coisa. Se havia algo que as duas prezavam era a confiança que depositavam uma na outra.
Desde que havia se separado do marido, Joana e Taís tornaram-se cada vez mais amigas. Aliás, a bem da verdade, é preciso dizer que, no início, não foi assim tão fácil. Nos primeiros meses após a separação, Taís se transformara numa criança triste e infeliz. A mudança de comportamento fora logo sentida no colégio, e de imediato a diretora chamou Joana para uma conversa. Lá, encontrou Teresa, a melhor amiga da filha, que lhe contou o que já intuía como mãe: Taís confidenciara-lhe que gostaria muito que os pais voltassem a viver juntos. Um detalhe, porém, magoou-a muitíssimo: Taís achava que a mãe havia se precipitado ao romper o casamento e a culpava pela infelicidade de ter o pai tão longe, de viver sem ele. Essa revelação doera em Joana muito mais que a dor da separação.
Os meses, porém, foram se passando, e a menina, aos poucos, foi se adaptando à nova situação. Logo o aproveitamento escolar voltou a mostrar a aluna aplicada de sempre, e, dentro de casa, a boa filha começou novamente a transparecer. Pode-se dizer que, a partir daí, tornaram-se de fato grandes e inseparáveis amigas, tanto que, ao ressurgir na vida da mãe o antigo namorado da distante adolescência, foi Taís quem mais a encorajou a seguir em frente com a nova relação. Quando aconteceu de não dar certo, a filha comportou-se também como uma pessoa madura: protegeu-a, defendeu-a, levantou-lhe o ânimo e restabeleceu-lhe o alto astral.
Agora a situação se inverte e, por incrível que pareça, é Joana quem não sabe como se comportar, como dar amparo à filha deprimida e apartada de todos, no quarto. Baixa a cabeça, concentrada nos pensamentos. Num gesto mecânico, as mãos se encaminham lentamente ao diário. Apanha-o e aperta-o de encontro ao peito, como se o fato de uni-lo assim tão intensamente ao coração pudesse interferir em seu conteúdo, mudando aquilo de triste que estaria descrito lá dentro. Do quarto começa a despontar uma música suave. É o primeiro sinal de vida. Logo, o volume se eleva e a canção romântica torna-se nítida aos ouvidos. Joana, então, percorre com os olhos todos os pontos da sala, como se tudo ali estivesse renascendo, ou acordando de um longo sono.
Um barulho na maçaneta faz o coração da mãe bater apressado. Fixa-se na porta, que suavemente se abre. Taís ressurge com um sorriso sapeca de menina travessa. Surpresa, Joana trata de devolver o diário para cima da mesa e, deslumbrada com a aparição tão inesperadamente alegre, caminha para perto da filha, também sorrindo. Os olhos de Taís ainda se revelam úmidos, mas não tristes. Abraçam-se. O medo e a inquietação se desmancham como por encanto. E a febre errática da paixão concede uma oportunidade ao coração adolescente de bater de novo normalmente. Até que esse sentimento intranquilo quem sabe retorne mais tarde. A paixão é uma doença malvada; incurável e até mesmo mortal, certas vezes. Mas que fazer? Estará em nossas vidas como o sol que se põe. E como a manhã nascente.
Música do dia
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica no portal crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
- O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
- Esta crônica, por exemplo, “Dores de amores”, está nas páginas 91 e 92 dessa publicação imperdível.
- Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas, em conclusão, o Diário Popular.