Guttemberg Nery Guarabyra Filho*
“Quem me vê assim cantando não sabe nada de mim. Dentro de mim mora um anjo”, dizia Cacaso num de seus versos. Não era de se duvidar que sob os óculos do poeta de gestos poucos e fala doce, nas entranhas de suas vistas, de seu cérebro, de seu espírito se escondesse um anjo.
Comigo às vezes acho que nos recônditos de minha alma há no mínimo um anjo travesso.
Estou assistindo a um concerto clássico. Um único piano, um único pianista no palco e ao lado dele uma única senhora de sobrancelhas eternamente suspensas em estado de máxima atenção vigia a partitura.
Ao final de cada período de leitura musical, ela passa rapidamente a página do álbum à frente do pianista para que ele não interrompa jamais o dedilhado e a música flua sem interrupção.
Lá no fundo de mim o anjo travesso pensa. E se ela falhasse? E se ao tentar mudar a página o papel escorregasse das pontas dos dedos e a página não virasse ou, ainda pior, adiantasse duas ou três páginas de uma só vez?
Antevejo a cena e me flagro sorrindo no momento mais dramático do recital.
Se acontecesse com o maestro numa apresentação de grande orquestra não haveria problema. Os músicos continuariam tocando e ele poderia corrigir voltando à página correta.
Mas penso na figura de um maestro e logo vejo Paulo Afonso Grisolli dirigindo a orquestra, coisa que jamais foi de sua alçada pois o que dirigia era teatro, atores. Em minhas duas únicas experiências como ator fui dirigido por ele, no Teatro Casa Grande, no Rio.
Num dos espetáculos eu entrava em cena cavalgando um cabo de vassoura com uma colorida cabeça de cavalo na ponta. Totalmente paramentado de cowboy, do colete às botas, chapéu texano e camisa com laço à la Roy Rogers, eu empinava, relinchava, despachava coices enquanto Sidney Miller interpretava O Circo.
Poucos meses antes eu havia vencido o Festival Internacional da Canção com uma composição suave e tinha sido capa de todas as grandes publicações cariocas em companhia de Kim Novak, Henry Mancini e Quincy Jones. Daí a surpresa do público ao me ver naquele papel que Grisolli havia elaborado para mim e que, depois do momento de espanto, provocava imensas gargalhadas na plateia.
Ele, bom investigador de almas, havia-me feito colocar para fora aquele anjo travesso que trazia escondido e que enxergava a assistente do pianista falhar no momento de virar a partitura.
Mas o que eu queria mesmo era que o maestro Grisolli ao cometer o erro tivesse o poder de fazer o concerto desandar e regredir no tempo a cada página que virasse para trás. Aí imaginei estampado na capa do caderno de regente na estante à sua frente o ano de 2024. E que estivesse dirigindo o tempo do mundo e o mundo fosse a orquestra. E assim regesse a sinfonia do tempo de volta até nos encontrarmos dando gargalhadas com o cavalo falso, ou emocionados ouvindo Suely Costa cantar os versos que musicou de Cacaso. Dentro de mim mora um anjo…
Como não custa sonhar, o desejo é que o anjo travesso de cada um possa se libertar esse ano e voar através dos tempos levando-nos de volta aos nossos melhores momentos. Para sempre.
Tenhamos um feliz Ano Novo.
A música do dia:
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.
