MSF defende derrubada de dispositivo que permite prorrogação de monopólios além do padrão internacional
Nesta semana, o STF (Supremo Tribunal Federal) pode tomar uma decisão que vai melhorar o acesso a medicamentos no Brasil, removendo um artigo da Lei de Patentes que vem sendo usado para manter preços altos artificialmente por longos períodos, prejudicando consumidores e onerando o sistema de saúde.
Os ministros da Corte vão analisar a constitucionalidade do parágrafo único do Artigo 40 da lei de propriedade intelectual brasileira, que permite a prorrogação automática de patentes além do padrão adotado pela OMC (Organização Mundial do Comércio). Médicos Sem Fronteiras (MSF) acredita que se o item for considerado inconstitucional e retirado, isso representará uma importante ação do Judiciário brasileiro no sentido de proteger o acesso a remédios a toda a população e impedir práticas abusivas. A medida é especialmente importante para permitir acesso a potenciais tratamentos que estão sendo desenvolvidos contra a COVID-19.
O Brasil adotou a regra de extensão de patentes em sua lei de propriedade intelectual, de 1996, levando a extensões automáticas e ilimitadas, além do padrão adotado pela OMC no acordo sobre propriedade intelectual, conhecido como TRIPS. Esse acordo permite que patentes vigorem por 20 anos a partir da data em que o pedido de patente é formalizado.
Além de conceder a patente pelo período mínimo de 20 anos após a requisição, a provisão na lei brasileira garante um adicional mínimo de 10 anos de proteção patentária a partir do momento em que a patente é concedida. Como o período de análise de pedido de patentes costuma levar mais de 10 anos no Brasil, as corporações farmacêuticas detentoras de patentes atualmente se beneficiam da lei, conseguindo prolongar seu monopólio e cobrar preços artificialmente altos, além de bloquear o acesso a alternativas mais acessíveis.
Atualmente, mais de 70% de patentes farmacêuticas já concedidas vão durar mais de 20 anos, e mais de 80% das patentes farmacêuticas pendentes de análise podem ir pelo mesmo caminho.
Como resultado dessa provisão, a produção de vários medicamentos que podem salvar vidas está sob monopólio no Brasil, com preços várias vezes superiores aos valores internacionais de referência. Isso inclui o raltegravir, para tratamento de HIV/Aids, a liraglutida, para diabetes, e o tocilizumabe, para artrite reumatoide e, potencialmente, COVID-19. A Bedaquilina, que será a base de uma nova geração de tratamentos contra tuberculose resistente a medicamentos, seguirá sob monopólio no Brasil até 2028, enquanto em outros países sua patente expirará em 2023.
“A norma de extensão de patentes ameaça a sustentabilidade do Sistema público de saúde brasileiro, do qual a maioria dos brasileiros depende para cuidar de sua saúde e até mesmo para sobreviver”, disse Felipe Carvalho, coordenador da Campanha de Acesso de MSF no Brasil. “Se considerar essa provisão inconstitucional, o Supremo pode garantir a disponibilidade não apenas de medicamentos necessários neste momento no combate a tantas doenças letais, mas também proteger o acesso futuro a tratamentos potenciais usados no combate à pandemia de COVID-19. Esperamos que nosso sistema jurídico tome a decisão correta e demonstre que prioriza a saúde da população a despeito de interesses financeiros de corporações.”
Há mais de uma década, MSF tem chamado a atenção para os impactos negativos de provisões de propriedade no acesso a medicamentos em legislações nacionais e acordos de livre comércio.
Um estudo de MSF sobre o impacto de Certificados de Proteção Suplementar (SPC, na sigla em inglês), um mecanismo semelhante às extensões dos prazos de patentes, sobre acesso a medicamentos na União Europeia mostrou que a indústria farmacêutica não necessita dos anos adicionais de monopólio para reaver os investimentos supostamente feitos em pesquisa e desenvolvimento (P&D). Na verdade, as extensões das patentes tiveram o efeito de manter preços de medicamentos elevados e restringir a competição.
“Vimos de perto como a Produção de genéricos permitiu uma forte redução nos preços de medicamentos para HIV e o papel essencial exercido por países como o Brasil em ampliar o acesso aos tratamentos”, afirmou Antonio Flores, médico infectologista de MSF-Brasil. “Mas os preços de novos tratamentos capazes de salvar vidas – incluindo medicamentos de terceira linha para o HIV, e tratamentos contra tuberculose, câncer e muitas outras doenças – estão subindo rapidamente. Se as empresas farmacêuticas continuarem tendo permissão para prolongar seus monopólios sem restrição, tratamentos que salvam vidas permanecerão inacessíveis para milhões de pessoas que precisam deles.”
Nas últimas décadas, o Brasil teve um papel de liderança em agendas importantes de saúde, incluindo a declaração sobre propriedade intelectual feita na Rodada Doha da OMC, em 2001, que chamou a atenção para a necessidade de melhorar o acesso a medicamentos e de tratar da questão das barreiras originadas a partir de sistemas de patente disfuncionais. Uma decisão do Supremo brasileiro de remover essa provisão ilegal não apenas vai reforçar os compromissos internacionais do Brasil, mas também facilitar o cumprimento de obrigações domésticas da agenda de diretos humanos relacionadas ao direito à saúde. Um veredito considerando o disposto inconstitucional também vai fomentar um ambiente mais propício à inovação, ao desencorajar o uso excessivo de estratégias de patenteamento e aumentar o volume de conhecimentos em domínio público.
A decisão também significará um precedente positivo para outros países que atualmente estão reformulando suas leis de patente, como a África do Sul.
“Muitos de nós em todo o mundo aguardamos ansiosamente esta decisão crucial da Suprema Corte brasileira”, disse Kate Stegeman, Coordenadora de Advocacy da Campanha de Acesso de MSF na África do Sul. “No momento em que o governo sul-africano ainda tem de finalizar emendas essenciais à nossa lei de patentes, que no momento ainda carece de salvaguardas adequadas à saúde pública, esta decisão no Brasil poderia servir como um forte estímulo para muitos de nós que também clamamos pela reforma na lei de patentes. A retirada desta medida nociva será uma grande vitória para o acesso da população a medicamentos na África do Sul e em todo o mundo.”