Por Guttemberg Guarabyra*
“Quer guaraná?” Claro que sim. Guaraná era a delícia das delícias. Aspirava-o no copo, sentia seu borbulhar espocando em micropontos na superfície, punha sua face sensível de criança próximo ao líquido e percebia o gás úmido refrescando-lhe a epiderme. Respirava fundo. Era guaraná — a bebida dos deuses da Floresta Amazônica. A única em que até o arroto era suave e perfumado.
Sentado à sua frente na mesa, o irmão lambia os beiços emoldurados por um fiozinho branco deixado pelo leite. De tempos em tempos o pai levava-os à tradicional leiteria para um lanche. Já havia trabalhado ali, primeiro como garçom e depois como gerente durante vinte e cinco anos. Havia cinco estava aposentado, menos pela idade e mais devido a um grave problema cardíaco, mas fazia questão de voltar acompanhado dos filhos, bem no fim do expediente, para que pudesse matar a saudade dos antigos companheiros já sem a presença de outros clientes. E, para que nunca deixasse de cumprir fielmente o programa, administrava criteriosamente o orçamento, de modo que sempre sobrasse uma gorjeta generosa para os ex-colegas.
Os meninos pediram bolinhos de milho. Trouxeram vários, acondicionados separadamente em fôrmas de papel. As crianças os retiravam do invólucro e os comiam, gulosos. Quando restava um pedaço grudado na embalagem, tratavam de arrancá-lo passando a língua. Deliciavam-se.
Terminado o lanche, veio a conta. O pai sacou do bolso do elegante colete uma cédula da qual sobraria um bom troco. Troco que, como sempre, ignoraria discretamente no pires de metal, próprio para depositar gorjeta. Os garçons agradeciam com afagos nos “rapazes” e acompanhavam o amigo até a calçada onde puxavam conversa sobre os velhos tempos.
Na calçada, o menino que se lambuzara com leite pediu licença para voltar ao interior da lanchonete e ir ao banheiro. O irmão aproveitou para solicitar que lhe trouxesse palitos. E, enquanto os adultos prosseguiam conversando, ficou de rosto colado na vitrine apreciando a mesa em que tinham lanchado e, sobretudo, a garrafa vazia de guaraná. Viu quando o irmão se aproximou da mesa para pegar os palitos que pediu, viu quando o irmão correu os olhos pelo recinto deserto… E viu quando roubou a gorjeta!
Na volta para casa, o menino do guaraná foi se atormentando. Deveria denunciar o do leite? E se denunciasse, será que o coração do pai resistiria à decepção? Mal chegaram, decidiu-se. Chamou o irmão num canto, passou-lhe uma senhora descompostura. E ameaçou:
— Da próxima vez conto tudo na frente dos garçons!
Respirou fundo, e completou:
— Vai ter de me pagar metade do roubo de hoje em guaraná!
Arrotou. Não entendeu por que dessa vez o arroto do refrigerante exalou um cheiro repugnante.
Música do dia
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
- O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
- Esta crônica, por exemplo, “Bebida dos deuses” , está nas páginas 71 e 72 dessa publicação imperdível, do mesmo nome.
- Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas, em conclusão, o Diário Popular.