Por Guttemberg Guarabyra*
“Os olhos de Maria Anita…” Vinha dirigindo pela Avenida Santo Amaro, quando, perto da Avenida Morumbi, vi a mulher alta, vestida modesta, porém mui distintamente, colocando as mãos sobre os olhos a protegê-los como se não pudessem suportar a luz. Dirigia tão devagar, apenas curtindo a cidade, que pude assistir a toda a cena. Dirigiu-se a duas pessoas que passavam, claramente pedindo ajuda. Tocou-lhes os ombros, tentando impedir que seguissem sem prestar-lhe atenção, mas foi em vão. Cismado com aquilo, entrei à direita e dei uma volta completa pelo quarteirão, para verificar o que ocorria. Passei novamente e lá estava ela. Resolvi ajudá-la. Para minha sorte, ela veio se aproximando da beira da calçada. Para sorte dela, nenhuma ameaça de ônibus na minha traseira. Parei, abri a porta do passageiro, estiquei-me todo e gritei:
— A senhora está precisando de alguma coisa?
Ela ouviu e, mãos nos olhos, rodopiou procurando de onde vinha a voz.
— Aqui! Eu estou no carro. De que a senhora precisa?
— Preciso de alguém que leia para mim as placas dos ônibus. O senhor sabe, eu fui ao oculista e ele me pôs um remédio nos olhos, para dilatar, para fazer o exame… O senhor sabe? — e desandou a falar.
— Quer que eu a leve?
Abaixou-se e tentou olhar meu rosto, mas logo teve de cobrir os olhos. Parecia que a claridade machucava as vistas.
— O senhor é cabeludo, é?
— Sou, mas a senhora pode confiar.
Senti uma pressão na nuca. Ergui-me e olhei para trás. Vinha um enorme ônibus. Ela, ignorando a ameaça, falava sem parar, mas, aflito, eu já não ouvia.
— … eu sou da Bahia… — foi a última coisa que consegui entender.
— Eu também sou! — berrei. — Ou a senhora entra já ou vou ter de ir embora. Tá vindo um ônibus aí atrás!
Ela decidiu-se rápido; abaixou-se, peguei sua mão e cuidadosamente ajudei-a a entrar. Mal bateu a porta, arranquei.
Depois de rodar apenas o bastante para livrar-me do mastodonte, perguntei pelo endereço. Ela exibiu-me um papel. Eu não conhecia a rua. Perguntei por um ponto de referência, se sabia de onde era perto. Ficava para os lados da hípica de Santo Amaro, que eu conhecia.
— Deixe comigo! — falei. — Muito prazer, meu nome é Guttemberg!
— De minha parte, é prazer e necessidade. O senhor vai me levar pra casa direitinho, ‘num’ vai?
Depois de convencê-la de que não precisava se preocupar, soube que ela era também do sertão. E, aí, foi uma confraternização só. Depois de um papo cheio de recordações e saudades da terrinha, só por curiosidade, para ver se ela também conhecia, comecei a cantarolar uma raríssima cantiga de roda do sertão, que, por coincidência, me perseguia desde cedo naquele dia:
— “Os olhos de Maria Anita…”
— “São pretos como carvão…” — continuou a moça, automaticamente.
Foi realmente uma alegria poder cantar com a conterrânea, aos berros, a cantiga de roda. Em tantos anos de cidade grande era a primeira vez que encontrava outra pessoa que soubesse as quadras da Maria Anita, e justo no dia em que acordara com ela na cabeça. A coincidência trouxe-nos uma amizade instantânea e seguimos caminho recordando outros velhos motes sertanejos. Até que, depois de muito tomar alguma informação, achamos o sobrado bonito em que ela morava com a família para a qual viera trabalhar. Tinha elogiado muito os patrões e senti que era feliz ali, pois a casa tinha um astral excelente. Levei-a até o portão e indiquei a campainha. Antes de me despedir, cantarolei uma outra cantiga incomum, que ela imediatamente cantou junto de novo. Mas a melhor foi quando se aproximou do portão e fez um gesto no ar, fingindo que batia à porta:
— “Quem bate?” — desafiou.
Minha mente girou e não me lembrei de nada; no entanto, sabia de alguma coisa assim… Antes que me ajudasse, lembrei-me. Só podia ser:
— Sou eu — respondi.
Ela:
— Eu quem?
Eu:
— Anjo-bem.
Demos sequência:
—“O que quer?”
— “Uma fita.”
— “De que cor?”
A próxima resposta terminaria a brincadeira. Mas, em vez de dizer a cor de minha preferência (assim deveria ser satisfeita a última questão), disparei uma gargalhada que ela logo acompanhou com uma espontaneidade que me fazia falta, que havia muito não presenciava. Ingenuidade das cantigas de roda, sinceridade de espírito ainda leve de sertão. Depois de despedir-me e de notar que ela continuava sem poder me ver, fui embora rezando para que “Maria Anita” tivesse toda a sorte do mundo na cidade grande.
Música do dia
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
- O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
- Esta crônica, por exemplo, “Anjo-bem”, está nas páginas 57, 58 e 59 dessa publicação imperdível, do mesmo nome.
- Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas, em conclusão, o Diário Popular.