Abaixo a opressão

In ABCD, Artigo On
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Por Guttemberg Guarabyra*

A ideia que tinha de política, no tempo anterior à ditadura, era a de que Carlos Lacerda estava à direita e o resto do Brasil à esquerda, na oposição. Lacerda agitava tanto que qualquer outra manifestação política ficava à mercê do anonimato.

Lá em casa, a briga era feia. Meus irmãos já pertenciam ao clandestino Partido Comunista mesmo antes do golpe militar de 64. E, por força disso, a clandestinidade acabava por atingir toda a família. Chegava uma visita à noite em casa e perguntava pelos manos. “Foram à cidade” ou “ao cinema” eram as respostas. Estavam na reunião do Partidão. Quando uma vizinha comentava sobre eles saírem muito aos fins de semana, ficávamos avaliando se não seria uma espiã. Por sermos suspeitos, de todos suspeitávamos. Soube de casos em que o estresse de um perseguido era tanto que este chegava a desejar a própria prisão. Meus irmãos, porém, eram verdadeiros idealistas. E o idealista raramente se desespera a ponto de se entregar. Sendo assim, afora o estresse de ter sempre uma boa desculpa na ponta da língua, a gente cumpria numa boa nossa parte no exercício da clandestinidade. E eles eram meus heróis.

Mas herói mesmo para minha mãe, e para desespero dos filhos mais velhos, era Lacerda. Somente após 1964, quando a barra pesou de verdade, minha mãe não teve mais dúvidas em reconhecer que os verdadeiros heróis eram seus filhos. Porém, antes disso, como ia dizendo, meus irmãos mais velhos, os dois comunistas, esgoelavam-se em argumentos enquanto minha mãe, irredutível, aumentava o volume do rádio ligado em Carlos Lacerda.

Ninguém desgrudava os ouvidos do aparelho quando ele discursava. Não era raro, na época, compará-lo a Rui Barbosa. No auge de sua carreira, seus dons de político e de orador derrubaram nada menos que o presidente Getúlio Vargas. Foi sua veemente e hipnótica oratória que fez a nação, que antes amava Getúlio, passar a odiá-lo e a querê-lo morto. Sem saída, o presidente suicidou-se, consumando o gesto político mais grandiloquente da história do Brasil.

E aí tudo mudou. O povo passou a injuriar Lacerda. No entanto, estou com Nelson Rodrigues: Getúlio sabia que seu tiro atingiria também Carlos Lacerda. Muito embora Lacerda não tenha morrido de fato, o tiro de Getúlio ao menos matou-lhe a ambição de chegar à Presidência. Se Getúlio apenas aceitasse ser deposto, como sem dúvida planejava Lacerda, a turba popular o colocaria, vitorioso, no Palácio do Catete com votação recorde. Mas o velho caudilho, com o suicídio, de certa forma, levou-o também a uma espécie de morte.

O alvo principal de Lacerda passou a ser, então, os comunistas. Em casa, a situação e a oposição guerreavam diariamente. Mas, no fim, todos ficaram do lado dos manos, apesar de Lacerda e da maneira como tratava de convencer a população de que a legalidade do Partido era uma ameaça à democracia. Era impressionante a capacidade de influenciar que esbanjava na tevê.

Vim falando dessas coisas e desviei-me do assunto. Queria mesmo falar era da clandestinidade.

No subúrbio carioca onde vivíamos, era comum dividir meu quarto com gente procurada pelas forças da repressão. De alguns fiquei amigo e até senti falta quando tiveram de transferi-los de “aparelho”. Mas nada se comparou à estadia do amazonense Luciano Marreiro. Magrinho, mínimo, boca torta, fala chocha, voz esganiçada, era uma figura. Eu havia sido encarregado de todos os dias, após chegar do colégio, dar-lhe assistência no refúgio. Dessa forma, era através de meus olhos que ficava sabendo o que se passava nas ruas. À noite, antes de dormir, contava-me sonhos de um mundo melhor. Às vezes, entusiasmava-se e derrotava, ali em pé, na cama, e em uma só batalha, todos os opressores.

Quando, no afastado e desértico subúrbio do Cachambi, a situação permitia, descíamos à noite do pequeno conjunto de quatro andares e nos sentávamos em uma pedra, no final da rua, longe das luzes dos postes. Estávamos lá, numa ocasião, quando passou uma moçada barra pesada. Era a época do rock da Juventude Transviada. 

A gangue, legítima representante do movimento, passou por nós e estacionou alguns metros à frente. Após uma rápida confabulação, seus integrantes, gingando como um bando de James Dean made in rock nacional, retornaram e se aproximaram da gente para dizer que haviam escutado as ofensas que lhes havíamos dirigido. Diante da evidente ameaça, senti o sangue guerrilheiro de Luciano subir. Tentei controlar a situação buscando convencê-los de que estavam enganados, de que éramos de paz, de que não havíamos dito nada. Só me faltava dizer que, se admiravam a marginalidade, mais marginais do que eles era o herói ali ao meu lado e que uma briga agora poderia denunciá-lo — o que resultaria em verdadeira traição, visto que, se havia alguém ali que dedicava a vida a transformar a sociedade, era o baixinho que me acompanhava. As explicações, porém, provocavam efeito visivelmente contrário às nossas expectativas. E os brutamontes foram se acercando de nós cada vez mais ameaçadores.

O mais velho, que parecia ser o líder, vestindo uma vistosa jaqueta de couro e portando junto do ouvido um bizarro radinho a pilha, aproximou-se e aplicou-me um empurrão seguido de um pontapé. Minha reação até hoje não consigo explicar. Disparei com precisão absoluta um uppercut de direita, que, além de atingir o rosto do sujeito, resvalou no radinho a pilha, que foi arremessado ao alto girando desesperadamente como um satélite artificial, reluzindo sob as luzes dos postes distantes.

Foi a prova absoluta de que a melhor defesa é o ataque. E, sendo de surpresa, ainda melhor. Com a reação imprevista, desgovernaram-se. Eram cinco. Luciano, talvez enxergando naquela patota de bairro as piores forças da opressão, a reeditaria mais tarde, com absoluta realidade, entre as batalhas que encenava à noite no esconderijo. Não acreditei quando o vi batendo com estupidez e velocidade nos west sides tupiniquins. No meio da briga, alguém me agarrou por trás. Logo Luciano acudiu-me montando-se nas costas do agressor, que teve de me soltar. Ainda me lembro de vê-lo rodopiando grudado no pescoço do meu algoz e gritando: “Esse é meu!”. O milagre maior veio a seguir: todos fugiram. Perseguimos a turma até o fim da rua e, ao perceber que estávamos nos expondo demais ao penetrar em território inimigo, longe de nossa base, voltamos correndo para o quarto, para a cela.

Não dormimos naquela noite. Até de manhã recordamos lance a lance a batalha. E derrotamos toda a opressão do mundo.

Música do dia

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica no portal crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
  • O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
  • Esta crônica, por exemplo, “Abaixo a opressão”, está nas páginas 45, 46, 47 e 48 dessa publicação imperdível.
  • Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas, em conclusão, o Diário Popular.

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