- Guttemberg Guarabyra
Mas apenas agora tomava ciência de que o caso era muito sério e que poderia até mesmo levá-lo à morte.
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Ela riu quando o ouviu dizer que ainda a amava. Ele insistiu na confissão, e ela se limitou a sorrir mais uma vez, como se desacreditasse o que estava escutando. Mudando bruscamente de assunto, apenas quis saber se diante do agravamento de seu estado de saúde ele precisava de alguma ajuda.
Parecia insinuar que era isso o que julgava ser o objetivo daquele seu telefonema inesperado. Havia muito não se encontravam, não se falavam, nem mesmo tinham informação um do outro. Só há pouco ela ficara sabendo por intermédio de amigos comuns de que uma doença o tinha acometido.
Mas apenas agora tomava ciência de que o caso era muito sério e que poderia até mesmo levá-lo à morte.
Talvez por simples delicadeza, perguntou se desejava que fosse visitá-lo no hospital depois que houvesse passado pela delicada cirurgia. “Claro que sim!”, respondeu com veemência. Afinal, o que mais queria na vida era reaproximar-se dela. Tinha, porém, uma certeza tão grande de que passaria desta para melhor durante a operação, que, mesmo com a promessa da visita e, dessa forma, ver renovada a esperança de reaproximar-se dela, logo entristeceu novamente.
Depois de uma pausa e de um longo suspiro, pela terceira vez confessou que a amava. Foi como refazer a cena de um filme. Ele repetiu a declaração. E ela repassou o sorriso desconfiado.
Diante de tamanha indiferença, despediu-se prometendo que não a incomodaria novamente. A aspereza com que falou deixou-a visivelmente perturbada. Mas não deu mostra de estar arrependida por não ter correspondido à confissão de amor. No entanto, afirmou que, mesmo que ele não quisesse, fazia questão de visitá-lo no hospital.
Desligou o telefone e ficou ainda por uns instantes fitando-o sobre a mesa, como se pudesse extrair dele algo mais do que o prazer de ter ouvido depois de tanto tempo aquela voz macia e reconfortante. O devaneio durou pouco. Logo a realidade se fez presente. E era uma realidade dura e implacável. Encontrava-se à beira da morte. Estava convicto disso. Muito embora os médicos não se cansassem de garantir que a intervenção era procedimento corriqueiro e muito seguro, nem assim conseguiam persuadi-lo.
Ninguém podia entender o motivo pelo qual estava convencido de que não sairia vivo do hospital. Na verdade, de nada adiantaria explicar que toda a sua certeza provinha das cartas do destino. Não haveria médico que levasse isso a sério. Dispôs as cartas três vezes. E por três vezes as cartas anunciaram-lhe o pior.
Para conferir, jogou também o I Ching. Este o deixou ainda mais convicto de que sua sorte estava traçada. Os oráculos jamais haviam mentido para ele. Jamais, em toda a sua vida, tinham errado uma predição.
Como sempre vinha ocorrendo ultimamente, lembrou-se de novo do tio Américo. Os médicos, na ocasião em que esse tio adoecera, afirmavam, tal qual agora, que a operação era vulgar e habitual e que o paciente não corria risco algum. Só que, confirmando as previsões oraculares que fizera o tio enfermo, depois da operação — que a equipe médica havia qualificado de “perfeita” —, Américo teve uma inexplicável parada cardíaca e partiu. E, infelizmente, agora chegara sua vez.
Mas estava tão conformado que nem de longe se mostrava abatido. Acontece que, além do estudo dos oráculos, guardava outro segredo que o estava auxiliando enormemente a viver esse difícil momento. Tratava-se de seu conhecimento sobre o espiritismo. Além de ter estudado em sigilo os fenômenos do culto espírita, passara também a frequentar alguns centros de aprendizado da doutrina, onde algumas experiências o haviam deixado plenamente convencido de que uma nova vida o aguardava após a morte do corpo humano.
Numa das sessões em que esteve presente, surpreendeu-se quando um médium, assim que o viu entrando, disse seu nome e o alertou de que muitos de seus amigos que já haviam “desencarnado” mandavam avisá-lo de que tinham cuidado de reservar um bom lugar junto deles.
Mesmo com todo o preparo que possuía, tomou um grande susto. Recuou amedrontado e voltou para casa o mais depressa que pôde. Foi naquela noite que jogou as cartas pela quarta vez. E, pela quarta vez, recebeu a mesma previsão funesta.
Finalmente chegou o temido dia da internação. Ingressou no hospital à noite — que passaria submetendo-se a preparativos. A cirurgia se daria pela manhã. Bem cedo, vieram buscá-lo. Procurou permanecer sereno. Tinha prometido ser forte até o fim. Administrada a anestesia, deitado e rodeado pela equipe, tentava adivinhar os rostos por trás das máscaras. Prestava atenção em cada parte exposta de todas as faces e buscava compor as feições escondidas.
Observava cada olhar. Sabia que eram os últimos que o observam ainda vivo. E que eram deles as últimas palavras que ouvia. Pouco a pouco, as vozes foram sumindo, as imagens desaparecendo, até que dormiu.
Acordou no quarto. Pela vidraça da janela entrava um sol forte. Uma enfermeira a seu lado o observava atentamente. Viu que ela usava um relógio. Sua primeira reação foi perguntar pelas horas. “Três e vinte”, respondeu a enfermeira, que perguntou como ele se sentia.
Sentia-se muitíssimo bem. Depois de conferir-lhe a pressão e a temperatura, informou com delicadeza: “Há uma visita à sua espera. Está aí desde o início da operação”.
O coração recém-operado ameaçou bater forte. Ela cumprira a promessa de visitá-lo.
Procurou manter-se calmo. Ao ser inquirido se desejava que a visita o visse, respondeu que sim sem pestanejar. A enfermeira saiu do quarto e fechou a porta. Poucos minutos depois, a maçaneta girou lentamente, alguém empurrou a porta com cuidado e exibiu o rosto alegre.
Reconheceu de pronto a face risonha que há tanto não via. Com um entusiasmado “olá!”, saudou-o o inesquecível tio Américo.
- Do livro ‘Teatro dos Esquecidos”.
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Música do dia
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.