A vida e o professor Cauby

In ABCD, Artigo On
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Por Guttemberg Guarabyra*

A mídia martela em minha cabeça que o mundo anda cada vez pior. Afirmado, provado, visto, comentado, flagrado e analisado pelos diligentes jornalistas, não há como discordar da insistente afirmação. Entretanto, há um passarinho inocente, melhor dizendo, desavisado, que cisma em cantar num galho em flor na varanda do meu apartamento, como se tudo estivesse muito bem e o mundo, apesar de maravilhoso hoje, ontem tivesse sido ainda melhor — pois é todo dia que esse Cauby Peixoto miúdo vem emitir trinados cheios de felicidade aqui em casa, faça frio, faça calor.

Digo que é um Cauby porque, o verdadeiro Cauby, quando o encontrava, estava sempre nesse mesmo estado de felicidade perene e à prova de climas. Não devia assistir à tevê. Algumas décadas atrás, talvez visse um pouco. Devia curtir os musicais. Se ainda assistisse tanto quanto antigamente, viveria preocupado. Atualmente, não há mais um lugar que se salve no Brasil nem no mundo. Afirmado, provado, visto, flagrado e comentado, cada pedaço do planeta ou está poluído, ou em constante conflito, ou passa por crises econômicas ou morais. E, apesar disso tudo, Cauby continuava recepcionando a todos de braços muito abertos enquanto caprichava na exclusiva e já folclórica saudação: “Professor!”.

Por isso, duvido que visse tevê ou abrisse os primeiros cadernos dos jornais. Tem isso: a tevê pega a gente de surpresa. No meio da Jornada nas Estrelas, cortam inesperadamente para o motoqueiro sendo atendido no meio da rua, ou para os biguás morrendo debaixo do óleo da Petrobrás. Sem falar nas vezes em que nos serve, sem que tenhamos como não engolir, um prato principal de sequestro acompanhado de mortes na sobremesa. Ao ler jornais, pelo menos você tem o direito de abrir apenas os cadernos que lhe interessam, e estes podem ser exclusivamente os de esportes e variedades. Não que, com isso, você vá se livrar do mundo visto pelos olhos da mídia.

Não. Por mais que você fuja, de uma maneira ou de outra, vai acabar sabendo que os melhores artistas, grandes modelos e, enfim, qualquer pessoa importante, geralmente, é ou já foi desonesta, ou tarada, ou deprimida, ou drogada, ou simplesmente está estranha. No mínimo, Angélica seria imensamente feliz se não fosse a Globo, e Xuxa seria muito mais correta se não tivesse seios de silicone.

Fazemos todos parte deste mundo sinistro, queiramos ou não. Portanto, cuidado ao sair de casa. Aquele céu lá em cima é uma ameaça. Por trás daquele sol brilhante e cheio de vida, daquele azul infinito e plácido, há um mar de azeite fervente prestes a ser derramado sobre nossas cabeças. Queimaremos já. Nem pense naquela mulher bonita, pois o destino dela já está traçado. Muito antes dos quarenta será assassinada ou terá câncer no útero ou, desesperada de tudo, assaltará à mão armada. No fim de tudo, o óleo que vai despencar do céu talvez nem represente uma tragédia. Quem sabe até sirva para cauterizar a Paulista, que está sangrando de sangue capitalista. Muito embora isso seja apenas uma rima que em nada combina com solução.

Sendo assim, não sei se arremesso contra o candidato ou se aproveito o ovo. Não sei se ligo o computador ou compro um colete à prova de balas. Não sei se choro ou se rio. Não sei se vou à luta ou me suicido agora mesmo. Chego à conclusão de que o melhor a fazer é pôr mais um mamão papaia lá fora aos pés da roseira da varanda, pois é a única maneira de calar o passarinho que continua cantando com uma potência bem maior do que se poderia crer ao calcularmos o tamanho minúsculo daqueles pulmões. “Conceição, eu me lembro muito bem…”, parece que entoa, e eu, no embalo, fico pensando se não devo trinar também. Ou seja, em resumo, muitas vezes, nos dias de hoje, não sei se ligo a tevê ou se, sorrindo acima do mundo, estendo um imenso abraço e trato apenas de imitar Cauby Peixoto.

Música do dia

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
  • O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
  • Esta crônica, por exemplo, “A vida e o professor Cauby”, está nas páginas 39 e 40 dessa publicação imperdível.
  • Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas o Diário Popular.

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