- Guttemberg Guarabyra
Mas mãe é mãe e um dia pude resgatar o instrumento proibido, desde que o devolvesse antes da chegada dos manos do trabalho, e guardasse segredo da autorização desautorizada.
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A primeira música é uma incerteza.
Meus irmãos mais velhos foram artistas. José, que chamava a todos de ‘Herói’ e acabou sendo apelidado com o nome que dava a todos, chegou a ser astro de um programa matinal da Rádio Nacional do Rio, a Globo da época, que apresentava apenas intérpretes de gaita de boca. E ele era fera no instrumento.
Gilson, o do meio (eu sou o mais novo dos homens, e depois de mim vem a caçula, Jerusa), pude ver nos primeiros programas da TV preto e branco, fazendo parte de um conjunto de mímica, cujo apresentador em iniciozinho de carreira mais tarde se transformaria numa lenda: Carlos Imperial.
Essas chamadas atividades artísticas dos manos não duraram muito tempo. Logo o mais velho se interessou por engenharia eletrônica, acabou sendo funcionário da Shell, virou líder sindical, presidente do sindicato da categoria, passou pela FUNAI, desesperou-se com o drama dos Ianomânis, largou tudo, foi morar em Brasília, tornou-se jornalista, prêmio Vladmir Herzog, voou para o sertão, comandou um programa de rádio e, numa tarde, foi tentar a vida no céu.
Gilson virou radiotelegrafista. Primeiro no sertão, numa base da antiga Varig, em Bom Jesus da Lapa, e mais tarde transferiu-se para a distante transamazônica, num posto avançado do INCRA, sempre enviando notícias e notas de serviço em linhas e traços radiotelegrafados.
Saiu da floresta para a cidade grande, em São Paulo não se adaptou, preferiu ser publicitário em Brasília, ganhou muitos prêmios, juntou um dinheiro, abriu uma agência em São Paulo com José, o Herói, e mais um amigo.
Poucos dias antes da inauguração, o Plano Collor rapou-lhes todo o dinheiro do banco. Amanheceram, como muitos brasileiros naquele dia, pobres e abarrotados de dívidas. Faliram sem ter inaugurado.
Porém, ainda antes de todo esse nomadismo, típico da família, os dois e mais um primo formaram um trio vocal.
Juntaram dinheiro e compraram um violão. Meus irmãos saíam para trabalhar, voltavam, ensaiavam em dupla.
Mas nos finais de semana, o primo, que morava afastado, se reunia aos dois e o trio soava muito direito e super afinado.
Quando os manos saíam para trabalhar, guardavam o violão em cima de um armário, mas eu era proibido de tirá-lo lá do alto.
Recomendavam à nossa mãe, Cecy, que não me deixasse mexer no bem precioso, pois que não haveria dinheiro para substituí-lo, caso eu e minha fama de descuidado pudessem prejudicar aquele patrimônio musical sempre longe de minhas garras e perto de meus desejos.
Mas mãe é mãe e um dia pude resgatar o instrumento proibido, desde que o devolvesse antes da chegada dos manos do trabalho, e guardasse segredo da autorização desautorizada.
E foi assim que, sem saber tocar, tive que formar meus próprios acordes.
Bota um dedo aqui, outro ali, a coisa foi soando.
Como não sabia acompanhar nenhuma música, acabei tendo que compor.
Depois, com mais estudo e dedicação (acabariam por liberar-me o violão), vieram outras. Mas até hoje sempre me comovo ao relembrar as primeiras composições.
Um dedo aqui, outro ali, e a incerteza da primeira música foi transformando o braço do violão numa estrada, e cada novo acorde em mais um passo rumo a esse mundo imenso da música, das harmonias, dos sons.
Música do dia.
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.