Guttemberg Guarabyra
Se a questão pudesse ser resolvida pelo diretor do andar de baixo, o assunto morria por ali. Somente em último caso o imbróglio subia para incomodar o staff do presidente.
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A secretária estudava flauta doce durante o expediente.
O sobrado abrigava uma repartição administrativa. No andar de cima, o presidente — hoje seria CEO — contava com quatro auxiliares. Um assessor, que raramente aparecia (a fofoca era de que se tratava de um funcionário fantasma) e três secretárias.
No andar inferior, inferior em tudo, nenhum mandachuva à vista, atendia-se o público.
Se a questão fosse resolvida pelo diretor do andar de baixo, o assunto morria por ali. Somente em último caso o imbróglio subia para incomodar o staff do presidente.
O chamado público não adentrava o sobrado a toda hora, de modo que sobravam aqueles momentos em que nem a papelada nem o atendimento pessoal exigiam atenção, e a flauta doce se fazia ouvir.
O som melodioso atravessava a porta fechada da sala da secretária, escoava pelo piso do balcão de atendimento, infiltrava-se pela soleira da porta da salinha de café, misturava-se ao perfume dos grãos torrados, subia a escada e atrapalhava a vida das secretárias do andar superior.
O presidente chamou o diretor do andar de baixo para uma conversa.
E relatou que dona fulana e dona beltrana, que já haviam trabalhado em w, x, z e outras grandes empresas, jamais se defrontaram com tamanha insolência. E pediam explicação sobre como pode ser permitido a uma secretária tocar flauta doce durante o expediente.
Já a assistente mais jovem, acho que Berenice, não dava muita atenção. Dizia, para irritação de beltrana e fulana, que até gostava, pois o som da flauta acalmava.
Mas isso o presidente não citou. Relatou apenas a irritação que a música flutuante causava às auxiliares, pois, segundo elas, em vez de vibração doce, a flauta emitia verdadeiro amargor em forma de ondas sonoras.
O diretor quis saber se o presidente, entre as melodias que a secretária flauteava, teria reconhecido alguma.
Sim, uma das melodias já tinha ouvido. Não lembrava onde. Talvez na casa onde morou antes de mudar-se para a capital. Súbito lembrou que, vejam só, havia um papagaio na família que assobiava aquela melodia.
Um papagaio! A conversa se estendeu por muitos minutos. Houve recordações de infância e comentários sobre a maldade de se criar aves silvestres. O papagaio, coitado, retribuía o podar periódico das asas com canto.
Ao fim da reunião, fulana e beltrana estavam meio que assustadas. Não sabiam interpretar o que houvera lá dentro. No rápido momento em que a porta se abriu para a saída do diretor, pareceu-lhes vislumbrar uma expressão feliz no rosto do presidente.
Nem meia hora havia se passado e do andar inferior, no início baixinho, a seguir um pouco mais forte, ressurgiu o som insidioso que invadia a salinha de café, subia as escadas, incomodava o andar de cima. E que reproduzia uma melodia que o papagaio da família do presidente conhecia.
Música do dia
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.