Por Guttemberg Guarabyra*
Fico anos sem saber o que um amigo faz, que profissão tem e do que trata fora das horas de boemia, quando estamos tomando todas e conversando sobre tudo. O Edgar, por exemplo, o mais idoso dentre nossos amigos de bar, foi um caso assim. Surgia do nada nos bares, sempre saltitante e alegre, sabia tudo sobre samba, enquanto nós sabíamos apenas que era do morro da Mangueira. Certo dia, quando ainda morava no Rio de Janeiro, saímos por Copacabana lá pelas sete da manhã, depois do último chope. Na ida para minha casa (iria pousar lá), que dava para ir a pé, passamos por uma rua onde havia uma sequência de lojas de móveis. Numa vitrine havia uma cadeira de balanço que fazia tempo procurava. Aproveitando a oportunidade, entramos na loja. O vendedor, muito atencioso, perguntou se a cadeira era para o vovô. Imediatamente Edgar fez uma cara de anjo, cresceu o queixo, tirou o boné, passou a mão na cabeleira branca e entortando a boca num bico apontando em minha direção, balbuciou: “Meu neto é muito bom para mim”. Peguei a bola no ar e entrei no jogo. Depois de muitos minutos de negociação, saímos de lá de posse de um orçamento para a compra da almejada cadeira de balanço para o “vovô” descansar e ler numa inexistente varanda. Como a primeira experiência de aparentados vovô e neto deu certo, seguimos até minha casa entrando em todo tipo de loja produzindo orçamentos em profusão, de saunas, conjunto de móveis de quarto e, no mais ousado da manhã, combinamos com um vendedor até a compra de um apartamento pro vovô.
Anos depois, já morando em São Paulo, percebi que nada sabia sobre as origens de Edgar Canela Fina, como era chamado o vovô nas mesas dos botecos cariocas. Curioso, liguei pro meu amigo jornalista Sérgio Cabral, pai, na esperança de que completasse a ficha. Nem mesmo Sérgio, historiador, profundo conhecedor do Rio e de seus personagens soube informar de onde Canela Fina teria surgido, e se mostrou tão surpreso quanto eu com o total desconhecimento sobre o companheiro de tantas horas boêmias.
Porém, pior do que não sabermos direito quem são os amigos, é saber rápido demais para quem estamos sendo apresentados. Ainda mais quando a apresentação se torna completamente indesejada. Certa vez, madrugada avançada, regressava para casa após uma apresentação num show no ABCD. No banco de trás do meu saudoso Corcel II, conduzido por meu empresário, num tempo em que a maioria das ruas do ABCD eram margeadas mais por casinhas simpáticas do que por edifícios, nos aproximamos de um cruzamento. As ruas tranquilas, no tarde da noite, dormiam.
O que aconteceu no segundo seguinte foi uma amostra sinistra da finura do espaço que separa a aventura terrestre do prometido céu. A rua tranquila passava direto e reto pelo cruzamento de uma rua que era base de uma imensa ladeira calçada com paralelepípedos. E foi descendo essa ladeira em desabalada corrida que um carro explodiu na nossa lateral. O choque foi tão violento que o pesado Corcel II saiu rodopiando e acabou com as rodas traseiras montadas no murinho baixo de uma das casinhas. Até hoje agradeço à coluna lateral do Corcel o fato de nada ter sofrido no acidente.
Vendo que tudo estava bem comigo, pedi que o empresário mexesse os braços, o pescoço, verificasse as mãos, os pés. Com ele estava igualmente tudo bem. Saltei correndo em direção ao outro veículo. Havia apenas o motorista no outro carro. Pedi que repetisse o mesmo procedimento que havia solicitado ao empresário. Mãos, pés, pescoço, tudo bem com ele também.
Passado o susto, respirei fundo e iniciei a bronca que estava entalada em minha garganta:
– Meu caro, como você tem coragem de dirigir dessa forma…
Fui interrompido pelo causador do desastre:
– Você não é o Guarabyra?
Confesso que fiquei sem palavras.
– Tenho todos os seus discos!
Continuei mudo enquanto o fã incauto saltava do carro e abaixando-se e abraçando com força minhas pernas alçou-me ao alto e passou a rodopiar comigo numa festa completamente inesperada. Nos rodopios, notei que os moradores, senhoras de camisolas, idosos de pijama, surgiam de dentro das casas e postavam-se nas calçadas tão surpresos quanto eu que rodopiava erguido pelo maluco. Que ao deixar-me de volta ao solo, meteu a mão num dos bolsos e sacou de lá um cartão: – “Sou médico homeopata”. Foi ao porta-luvas do carro, que estava um tanto esbagaçado, e trouxe de lá uma caneta. Queria um autógrafo.
No caso de Canela Fina, apesar de nossa grande e duradoura amizade, jamais soube direito o que fazia. No caso do maluco, sem nem sequer um momento de familiaridade já sabia que era médico homeopata, além de gostar de música.
Moral da história, antes um amigo fiel que a gente jamais sabe quem é, mas ainda assim só lhe traz felicidade na aventura terrestre, do que um conhecido novo que no mesmo instante em que lhe é apresentado rodopia você, carro, sua vida, tenta lhe mandar dessa para melhor, mas possui ficha completa e até cartão de visita. Tá louco. Cada uma.
Música do dia
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica no portal crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas, em conclusão, o Diário Popular.