Por Guttemberg Guarabyra*
Os piores momentos que passei durante a adolescência foram, sem dúvida, aqueles em que, como filho de pastor batista, tive de dar exemplo de bom comportamento. Enquanto todos os amigos podiam tirar uma moça para dançar e, até mesmo, falar palavrões, o carola aqui tinha de se comportar de maneira exemplar. Desse modo, foi inevitável que eu começasse a associar a liberdade ao abandono da religião. Mesmo assim, resisti bastante e só a abandonei, de fato, quando venci o Festival Internacional da Canção e virei artista. Aliás, nem mesmo aí eu desertei da religião. Aconteceu que, por causa de minhas aparições no universo mundano dos programas de televisão, terminei por ser excluído e, dessa forma, expulso, fui obrigado a abandonar a comunidade religiosa que frequentava desde a infância.
Mas não guardei mágoa. Na verdade, tinha mais o que fazer. Além disso, um verdadeiro cristão não depende de curso em nenhum tipo de igreja. É uma coisa que você traz no coração, na consciência. Você é seu próprio templo. Digo mais: se meu desligamento tivesse ocorrido mais cedo, talvez eu até tivesse sido melhor cristão, visto que, como filho de pastor e, em razão disso, ser obrigado a dar o melhor exemplo, vi-me muitas vezes fingindo ser o que não era — o que se tratava de uma mentira e, como tal, puro pecado. Uma contradição. No entanto, havia também certas vantagens.
Quando a pequena comunidade batista de Bom Jesus da Lapa, sob a direção de outro pastor, o pastor João (e não o meu pai), resolveu partir numa viagem de dias pelo Rio São Francisco, para pregar o Evangelho ao perdido povoado de Rio das Rãs, a minha condição de fidalgo possibilitou que eu reservasse um dos disputadíssimos lugares na pequena embarcação de vinte assentos em que seria empreendida a aventura. E ainda — supremo privilégio — garanti assento para minha quase namorada. Se fosse nos dias de hoje, não haveria outro fato a comemorar além do sucesso por ter conseguido as reservas. Porém, naqueles dias e naquele sertão remoto, quando a gente só podia ver a namorada ao cair da tarde, era evidente que, viajar juntos, era uma oportunidade rara e um acontecimento para ser festejadíssimo. Ainda mais se levarmos em conta que o pai da garota não permitia de modo algum o namoro — o que me obrigou a esconder até o último momento que a vaga que pleiteara com tanta insistência não se destinava à minha irmã, conforme fizera constar na lista de passageiros. Golpe baixo. Por amor, dizem, Deus tudo perdoa.
No dia da partida, embarquei, enfiei um chapéu na cabeça e observei quando o apressado pai deixou a filha no cais e não se aproximou da lancha onde eu fazia de tudo para me esconder atrás das costas largas de uma senhora, digamos, bem alimentada, de cujo nome não me lembro mais. Aliás, foi do farnel dessa senhora alegre e cantadeira que me servi durante toda a viagem. Depois de cantarmos dezenas de hinos, aos berros, no meio do rio enorme em que nos sentíamos pequenininhos, chegava a fome. E lá estavam as frutas e a deliciosa farofa de carne seca, gentilmente cedidas, que a gente empurrava com a limonada doce e fresca. Nos intervalos, a emoção de alcançar as mãos suaves da paquera. Foram horas inesquecíveis. Ainda mais que navegamos também durante a noite, cuja escuridão ocultava e permitia ainda mais intimidade entre nós dois. Sem contar que acabamos contando com a cumplicidade dos “irmãos”, que faziam vista grossa para o namoro cândido e adolescente.
Chegamos ao destino no avançado da noite e, sempre com momentos de hinos à toda goela, nos pusemos a caminhar na escuridão por algumas horas até alcançar o distante vilarejo. A inesquecível caminhada nos permitiu abraços e apertos. Quando a lua nasceu, gigante e prateada, despertou paixão da pura e suspiros de arrebentar os pulmões, até chegarmos ao quilombo habitado por negros de velha história e antigas lutas. Na volta, após dois dias de pregação e bênçãos, viemos todos explodindo de contentamento pela missão cumprida, enquanto, em particular, dois corações estouravam de amor ardente. Durante o percurso da volta, passados momentos de silêncio profundo, em que todos se ensimesmavam absorvidos em seus próprios pensamentos diante da beleza das margens e das águas profundas do rio, vez em quando irrompia da garganta da senhora gorda um hino a toda altura, que compartilhávamos num regozijo franco e puro. Dentro das nossas almas adolescentes, cristãs e apaixonadas, brotava o brado de glória, Glória! Vencendo vem Jesus distribuindo chuvas de bençãos a todos que O louvam e quem sabe (que os anjos lá em cima digam amém) concedendo ao filho do pastor um bondoso perdão pelas pequenas transgressões.
Música do dia
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
- O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
- Esta crônica, por exemplo, “O filho do pastor” , está nas páginas 161, 162 e 163 dessa publicação imperdível, do mesmo nome.
- Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas, em conclusão, o Diário Popular.