Por Guttemberg Guarabyra*
Maldormido, cansado, gripado, febril, dei graças a Deus quando pude, finalmente, instalar-me em meu assento no avião. Minha estada em Paris havia sido meteórica. Dispondo de tão pouco tempo para conhecer a cidade, tivera de expor-me à chuva e ao frio para visitar alguns pontos turísticos. E acabara adoecendo.
Mas estava feliz. Tinha valido a pena andar pelas ruas antigas, experimentar a sensação de vagar por entre prédios carregados de história, tocar as paredes de Montmartre e, de lá de cima, deslumbrar-me com a noite da Cidade Luz. E compreender, emocionado, por que ela é chamada assim. Agora era tratar de descansar até chegar a Nova York, tratar de recuperar-me e completar a turnê. Ainda bem que havia conseguido lugar à janela. A última imagem que lembro ter visto, antes de adormecer, foi a dos penhascos imensos da costa irlandesa.
Acordei em meio a um tumulto. Alguns passageiros discutiam acaloradamente na parte de trás da aeronave. Espichei o pescoço por sobre o encosto da poltrona e divisei meu baixista, Pedrão Baldanza (https://pt.wikipedia.org/wiki/Pedro_Baldanza ) , encarando, com o dedo em riste — e de cima para baixo, visto que ele tem quase dois metros de altura — uma aeromoça americana. Era uma bronca e tanto, em português, o que não impedia que a loura de olhos azuis entendesse que o gaúcho estava determinado a cumprir sua ameaça. Ato contínuo, ele pôs na boca o cigarro, que já brandira diante da mulher uniformizada, e o acendeu. Ao soltar a baforada que a tripulante queria proibir, foi aplaudido.
Levantei-me para acompanhar melhor a cena. Em pé, junto do brasileiro, havia um grupo de fumantes de diversas nacionalidades, que o apoiava. A funcionária visivelmente apavorada com o motim correu a buscar reforços na cabine de comando. Resolvi falar com Pedrão. Impossível. Ele não parava de falar, aos brados, enquanto me aproximava dele: “Esta companhia escrota vende assentos para fumantes e só em pleno voo anuncia que vai ser proibido fumar durante a viagem!”. Pois é. Naquele tempo ainda era permitido fumar durante os voos. Em contraponto às paisagens límpidas do lado de fora, dentro das cabines imperava uma neblina azul tóxica e irritante. Hoje, nem daria para imaginar. Pedrão sorveu outra tragada, soltou mais uma longa baforada e acrescentou: “Eu vou fumar!”. E exagerou: “Se não deixarem fumar aqui dentro vou fumar lá fora!”. Percebendo, porém, que era seu amigo quem o interpelava, desligou-se da imagem da aeromoça e reconheceu que estava nervoso (Baldanza é grande de tamanho e de diâmetro, mas posso garantir que é grosso apenas no aspecto físico).
Nisso, cara de malvado, surgiu um membro graduado da tripulação. Mas assim que viu o tamanho da encrenca, mudou a expressão de animal raivoso para uma de simples e simpático inspetor escolar. Baldanza, desanuviando o clima, mudou de atitude também, contribuindo para que o ambiente ficasse cordial. É isso que eu estava dizendo: ele é, na verdade, uma pessoa doce e ponderada. Mas cuidado: nunca pisem os calos de um tipo da fronteira. A Pan American, quando o fez, teve de enviar um representante para negociar um acordo. Dessa forma, reconhecendo no rosto de italianos, franceses, ingleses e brasileiros que a companhia procedera de maneira realmente injusta com os fumantes, o tripulante permitiu que todos fossem tragar em uma espécie de saleta localizada próximo aos banheiros.
Foi uma festa. Por um bom tempo, a turma promoveu uma conferência internacional de fumantes felizes, celebrando a vitória obtida sobre um dos mais poderosos inimigos do tabaco: as companhias aéreas. Depois foram cansando e, lentamente, recolhendo-se a seus respectivos lugares. Logo o voo ficava novamente tranquilo — e menos esfumarado.
Encerrando o episódio, a aeromoça, ao passar por meu assento, fez um comentário sobre meu amigo, tachando-o de estúpido. Chamei-a para junto de mim e a adverti bem baixinho, em inglês: “Cuidado. Ele é muito perigoso!”. Ela recuou, esbugalhou o par de olhos azuis, aproximou-se novamente e sussurrou: “Dangerous? Really?”. Balancei a cabeça afirmativa e enigmaticamente enquanto ela, atemorizada, observava atentamente o baixista, agora de fones e já tratando de assistir a um filme. Foi muito engraçado.
Satisfeito com a gozação e vendo que o clima havia se estabilizado, tratei de descansar e dormi profundamente. Horas depois, acordei, por incrível que pareça, com mais uma rebelião. Dessa vez motivada pela interrupção do longa-metragem que estava sendo exibido nas telas e que tinha pifado justamente quando se desvendaria o intrigante mistério que havia eletrizado a todos durante a viagem. O protesto agora não era só de fumantes, mas geral, de adolescentes sardentos a capitalistas barrigudos, todos exigiam, em diferentes idiomas, a exibição do final da trama. Pedrão tinha se tornado líder também dessa manifestação e não acreditou quando, após ter dado uma busca na fita (ainda estávamos na era dos vídeos gravados em fitas magnéticas), o chefe de cabine informou que, por cima do epílogo, haviam gravado um comercial da Panam e que seria impossível exibir o desfecho da história.
Foi aí que o gaúcho, outra vez irritado, proferiu: “O que essa companhia merece é ser fechada!”. Nunca vi praga tão bem rogada. Poucos meses após começou a circular a notícia de que a Panam estava ferida de morte. Tempos depois, faliu. Por isso vou relembrar a lição: nunca pisem nos calos de um tipo da fronteira. É mais dangerous do que possa imaginar.
Música do dia
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
- O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
- Esta crônica, por exemplo, “O gaúcho que fechou a Panam” , está nas páginas 169, 170 e 171 dessa publicação imperdível, do mesmo nome.
- Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas, em conclusão, o Diário Popular.