Por Guttemberg Guarabyra*
A notícia correra a favela e num minuto os moradores já comentavam que lá embaixo, na farmácia, tinham prendido um tarado e que estavam aguardando a chegada da viatura policial. Logo um monte de crianças curiosas descia o morro em algazarra. Seguiam ávidas por observar de perto aquilo de que tantas vezes ouviram falar, mas que não tinham ideia exata do que significava: um tarado. Bandos de mulheres principiavam também a descer já praguejando contra o desgraçado. Enraivecidas, proclamavam aos brados que ele deveria morrer. Os homens, nervosos, iam despontando das portas dos barracos e seguindo o cortejo, pescoços erguidos, como um predador em busca de sua presa. A criançada atenta a tudo o que se dizia cruzava na frente da turba, pulando de calçada em calçada. Ao verem outras crianças assustadas com o movimento, e que ainda não sabiam direito do ocorrido, corriam a avisar, mesmo sem entender muito bem sobre o que estavam falando: “Um tarado! Prenderam um tarado!”.
Um menino, que se encontrava no banho quando a mãe avisou que estava saindo para ver o ocorrido, chegou atrasado à porta da farmácia e já encontrou o local apinhado de gente. Atravessou a multidão esgueirando-se por entre a aglomeração graças à sua extrema pequenez e magreza, malgrado as tachações de mal-educado que ia recebendo à medida que avançava. Inquieto, achava-se arrebatado pela excitação de finalmente conhecer de perto o ser monstruoso de que tanto ouvira falar na tevê, nos programas policiais. Esperava, com medo, deparar-se com os olhos esbugalhados da fera, enojar-se com a visão da baba gosmenta a escorrer da boca enquanto mal conseguia respirar. Decidiu que não chegaria perto se não se certificasse antes de que estava com os pés e as mãos bem presos por alguma forte corrente. Talvez o tivessem amordaçado. Daí não poderia ouvi-lo rosnar.
Finalmente conseguiu alcançar a calçada da farmácia. Lá dentro, dois policiais conversavam com o farmacêutico. Tomou coragem e chegou bem perto. Esticou o pescoço e olhou à direita, para depois da parede. Pôde ver então, um pouco atrás do balcão, sentado numa cadeira com os pés amarrados por uma corda e as mãos algemadas para trás, um rapaz bastante machucado. Tomou coragem e aproximou-se ainda mais. Um odor de suor e medo invadiu-lhe as narinas. Um dos policiais pediu que se afastasse. Recuou apenas um passo.
O rapaz, descalço, mantinha um pé sobre o outro. Com o dedão do pé direito esfregava nervosamente o outro pé. Era negro, magro, quase esquelético. O lábio havia sido partido por uma pancada. O olho inchado escondia um olhar de bicho acuado. Falou alguma coisa. O policial aproximou-se e perguntou o que tinha dito. O menino ouviu perfeitamente quando disse: “Não fui eu…”. O policial mandou que calasse e sapecou-lhe um tapa na cabeça.
Teve vontade de sentir pena do criminoso, mas lutou contra o sentimento que se insurgia dentro dele. Bem a propósito, lembrou-se do apresentador do programa policial gritando que “todo tarado é um bicho indecente que merece, no mínimo, passar o resto da vida na cadeia”. A lembrança neutralizou o sentimento de pena e o menino tentou, de novo, embora inutilmente, ter ódio da fera acuada.
Poucos minutos depois, a viatura chegou e levou o criminoso, que partiu sob uma imensa vaia e palavrões de todos os tipos. À noite, deitou-se para dormir e a imagem do tarado não lhe saía da cabeça. Adormeceu sentindo-lhe o cheiro de pavor e tendo na mente a imagem dos pés descalços e sujos a se esfregarem nervosamente.
Acordou na manhã seguinte com absoluta certeza de que tinha havido algum engano. Ou o homem que vira apanhando nada tinha feito ou o tarado que o programa policial descrevia era uma espécie de monstro muito diferente daquele bicho esquelético e assustado que tinha visto.
Música do dia
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
- O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
- Esta crônica, por exemplo, “Programa policial” , está nas páginas 197 e 198 dessa publicação imperdível, do mesmo nome.
- Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas, em conclusão, o Diário Popular.