Por Guttemberg Guarabyra*
Depois de vencer o Festival Internacional da Canção, a polêmica instaurou-se no Rio de Janeiro. Discutia-se a cada esquina se o resultado teria sido justo, visto que aquele rapazola magro e insolente, sem tradição alguma no meio musical, tinha deixado em segundo e terceiro lugares nada mais, nada menos que Milton Nascimento e Chico Buarque. No Carnaval, estourou uma marchinha que relatava a pendenga da classificação. Dizia que “a noite era de Carolina (de Chico Buarque), mas foi Margarida (minha canção) que entrou de sola”. Caetano Veloso, em Baby, discorria, ferino: “você precisa saber… da margarina, da Carolina…”.
Eu me divertia muito. Afinal, das três canções que havia inscrito no concurso, duas foram classificadas. A interpretação da outra, Marinheiro olé, foi comentada pela crítica da época como um tour de force de Agostinho dos Santos. Quanto a essa canção, houve um lamentável descuido de minha parte que quase comprometeu sua apresentação. Aconteceu que, depois de ter sido procurado por Agostinho dos Santos, que se ofereceu para defendê-la, ele não mais conseguia encontrar-me para que eu o instruísse sobre a letra e a melodia. Ora, aos dezenove anos naquela Cidade Maravilhosa de perdição e de desejo, assim que se espalhou a notícia de minha ousada classificação, começaram a surgir oportunidades que minha condição anterior, de, digamos, pouco favorecido, anônimo e mal-ajambrado, jamais havia permitido. De uma hora para outra, passei a ser requisitado para reuniões sociais em que a quantidade de gatinhas a lançar olhares furtivos em minha direção ultrapassava, numa só noite, todas as chances surgidas durante toda a minha existência. Daí desaparecer e só voltar a dar as caras dias depois, virou rotina. Um brinde aos dezenove!
Isso deixava o grande Agostinho dos Santos maluco, pois a data da apresentação se aproximava e ele não conseguia deter-me num canto para finalmente aprender a cada vez mais maldita composição que havia escolhido para defender. Tudo ficou mais fácil, porém, a partir do momento em que, com o dinheiro que começava a entrar, pude alugar um quarto no folclórico Solar da Fossa, morada de dez entre dez artistas daquela geração. Com endereço fixo e não mais residindo de favor nos mais diversos pontos da cidade (inclusive no próprio Solar, no quarto alugado por Paulinho da Viola e Abel Silva), ficou fácil localizar-me. Tanto que, certa tarde, Agostinho dos Santos abriu a cortina do meu recém-alugado apartamento térreo e me encontrou.
Eu havia chegado em casa com o dia amanhecendo, já acompanhado daquela que acabaria sendo a namorada que me acompanharia por longo tempo. Acordamos cerca do meio-dia e, preguiçosamente, continuamos na cama. Roça daqui e dali, e como nada é melhor do que fazer amor logo ao despertar, atracamo-nos mais uma vez.
No pátio interno do Solar, Agostinho, com suas bochechas enormes e o sorriso mais simpático que já vi, depois de certificar-se na portaria sobre minha presença, aproximava-se sorrateiramente da janela do meu quarto. Discretamente, verificou que estava cerrada apenas pela grossa cortina. Lá dentro, a sessão de amor continuava, sem que déssemos conta do drama que estava prestes a se desenrolar a partir da janela, aos pés da cama. Até que aconteceu. Agostinho, segurando firmemente a cortina, descerrou-a de um só golpe ao mesmo tempo que bradava: “Achei!!!”. Colhidos de surpresa pelo berro e pela luz intensa do dia, eu e minha namorada nos quedamos paralisados. Olhei para trás, por cima do próprio ombro, e divisei a cena que jamais esquecerei: Agostinho dos Santos, pálido, fitava-me daquele ponto de vista esdrúxulo enquanto balbuciava palavras incompreensíveis. Imediatamente bateu em retirada. Aí foi minha vez de procurá-lo. Em vão. Só consegui mesmo achá-lo no dia da apresentação, que foi excelente e mereceu como elogio de um jornal a tal expressão francesa que significa “emprego de muita força para alcançar um fim”. E cujo sentido me faz lembrar que, depois de Agostinho ter debandado, não houve tour de force capaz de fazer o casal prosseguir. Muitas horas mais tarde, a gente ainda não conseguia parar de rir.
P.S. Hoje, 29 de abril, a novela Alma Gêmea volta a ser exibida nas tardes de Vale a Pena Ver de Novo, na Globo. Margarida, na interpretação do Roupa Nova. faz parte da trilha musical. 56 anos depois, ela ainda vive.
Música do dia
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
- O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
- Esta crônica, por exemplo, “Tour de force”, está nas páginas 223 e 244 dessa publicação imperdível, do mesmo nome.
- Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas, em conclusão, o Diário Popular.