Vamos chamar o vento

In ABCD, Artigo On

Guttemberg Guarabyra*

“Vamos chamar o vento…” Braços estendidos, corpo bem esticado, em pé, de frente para o fim escuro da grande avenida silenciosa e deserta, esperávamos o vento de olhos fechados, concentrados. Minha mãe, da porta de casa, cantava o verso e comandava a última brincadeira da noite. Eu e meus amigos esperávamos a brisa. Às vezes, ela vinha. Quando não, minha mãe mudava a letra da canção de Caymmi para: “Vamos escovar os dentes…”.

Era o sinal de boa-noite. Eu e a garotada reclamávamos, alguém ainda dizia que ouvia um rumor de vento. Não era. Sem mais desculpas, nos despedíamos. Lá dentro de casa, a pergunta era sempre a mesma—: por que não podia ir dormir mais tarde? A resposta, também a mesma: “Porque a luz acaba às 10 e meia”. Vai ver que, no escuro, o vento aparecia ligeiro.

O vento, quando chegava, era uma festa. Aparecia do nada. A característica dali, na época da seca, era ou ausência total de ventos, ou brisa forte. Às vezes, vinha tão bravo que virava rodamoinho. Movimentando-se em círculos, erguia um cone de areia, que cobria a luz amarelada dos raros postes, alvoroçava nossa vida e, depois, ia arrefecendo até nos abandonar. Não sei por que o vento da noite quase sempre vinha tarde.

Isso era em Xique-Xique. Porém, subindo no mapa e descendo o rio — o São Francisco desce para cima no mapa —, na região de Piranhas, Pão de Açúcar, Propriá e Penedo, ou seja, depois da cachoeira de Paulo Afonso, o vento mudava. Depois dali, não falta vento. Os barcos, de velas cheias, singram rápidos, batendo forte nas ondas formadas pelos pés de vento. Exigem perícia dos velejadores. Será aquela arte de navegar herança dos holandeses da invasão? Vistas de frente, quando as duas velas, uma à proa, outra à popa, estão viradas para lados opostos, as embarcações parecem as mãos do gesto-símbolo da passada campanha “Sou da Paz”, como na tevê.

Certa vez, ouvi Amyr Klink falando que a história da navegação, no Brasil, não é considerada cultura. Que, ao se buscar um patrocínio oficial para eventos da pintura, música, restaurações de templos e outras iniciativas reconhecidas como culturais, ele é possível. Para reconstituir a história da navegação, da construção naval brasileira, não se consegue verba. Nem ouvem. Um dos maiores navegadores do mundo — deveriam escutá-lo. Ainda bem que está acostumado a dificuldades. Bons ventos o acompanhem.

No Sul, estão aparecendo umas rajadas muito fortes. Não sei se existiram sempre ou se nós é que tomamos ciência delas apenas agora, devido à integração por meio das telecomunicações. Na televisão, uma vítima de um golpe de vento disse que não adiantava querer ficar de pé quando foi atingida, pois era arrastada como se planasse.

Mas, hoje, não quero descambar a conversa para o cenário das tempestades, vendavais e tragédias. Quero apenas recordar bons momentos marcados pela agradável presença de uma brisa suave e doce. Ou, no máximo, lembrar as virações, que impressionavam pela força com que empurravam as embarcações. Um dia, em cima de um penhasco sobre o São Francisco, em Penedo, cismava com a velocidade dos barcos viajando sobre as águas e com a destreza de seus pilotos. Acabei convencendo a tripulação de um deles a me levar rio acima, durante cinco dias, até que as pedras, próximas de Paulo Afonso, não permitissem mais passar. Nunca me saem da cabeça esses cinco dias impulsionados pelo vento.

Minhas lembranças às vezes são assim: levadas pelo vento, mesmo em dia de calmaria total. Mas as horas de calmaria são as que mais me trazem saudades do movimento. “Movimento dos barcos… movimento”, como na canção de Macalé e Capinam. O vento é a própria lembrança do estar no planeta, o enigma da natureza que nos acompanha desde o primeiro sopro, que é o da vida, até o último suspiro, na morte.

Cá estou eu desviando a conversa, de novo, para reflexões impróprias ao que me havia prometido para hoje. A cada ano que começa, mais um ano de vida, de vento e de movimento, quem sabe para marcar a data — já que não gosto de festejos —, meu espírito me impõe escrever uma crônica nostálgica. Sinal dos ventos. Digo, dos tempos. Mas vento é vida. Se me perguntassem, como Manuel Bandeira, na Estrela da vida inteira, o que eu mais queria além de versos e mulheres, responderia, em vez de “vinho”, “Vento!… o vento que é o meu fraco”. E, no lugar de “Evoé, Baco!”, entoaria o Caymmi da infância: “Vamos chamar o vento…”. Daí, fecharia os olhos, procurando ser eternamente levado.

Músicas do dia:

*Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras. Esta crônica, “Vamos chamar  vento”, está nas páginas 229, 230 e 231 dessa publicação imperdível. Músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu da mesma forma O Outro Lado do Mundo, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas o Diário Popular.

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