Guttemberg Guarabyra
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Dobrei a última esquina, subi a última calçada, e notei o movimento inusitado de gente espichando o pescoço através das janelas para dentro da casa de minha vizinha.
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Nas férias escolares, manhãs livres, ia para o aeroporto ver os aviões chegarem e partirem.
Sempre fui apaixonado por eles. Desenhava-os, recortava figurinhas das revistas, caças, bombardeiros, hidroaviões, sobrevoam minha vida desde criança.
O pequeno aeroporto de Bom Jesus da Lapa naquele tempo operava regularmente apenas dois voos diários de passageiros. As companhias de aviação usavam o lendário DC-3 e o não menos célebre C-46, ou Curtis Commander.
Bem parecidos, quando criança os identificava como o ‘com bico’ e o ‘sem bico’, pela ordem, o DC-3 e o Curtis.
Tendo um irmão e um cunhado como funcionários da única companhia aérea operante, tinha privilégios únicos.
Como, por exemplo, acompanhar o cunhado, que era mecânico de aviões, em reparos de motores e conhecer a intimidade das máquinas que me encantavam.
Já com meu irmão, telegrafista, acompanhava as conversas entre a base (ele), e a aeronave que levava a bordo o telegrafista de voo.
As conversas em sons de ponto e traço do alfabeto Morse se desenrolavam numa velocidade inimaginável para quem falava apenas com os dedos apertando a tecla única do telégrafo. Um rápido toque para emitir o som de um ponto, uma pressionada minimamente mais demorada, e eis ali o traço.
Aquele mundo era mágico.
Não sei se contribuía para essa percepção de mundo mágico minha adolescência de curiosidade insaciável.
Saindo do aeroporto, numa tarde ensolarada, após acompanhar o último voo sumir nas nuvens distantes, voltei pra casa.
O caminho era longo, de modo que o sol batendo forte já havia me secado por dentro e molhado por fora, de tanto suor.
Dobrei a última esquina, subi a última calçada, e notei o movimento inusitado de gente espichando o pescoço através das janelas para dentro da casa de minha vizinha.
Corri a ver do que se tratava. Deus me livre de uma tragédia estragar o dia tão tranquilo.
Consegui me espremer entre os que espichavam o pescoço para dentro da casa e pude ver a cena. Minha vizinha, usando o melhor vestido, maquiada com esmero, havia ornamentado a mesa comprida da sala com uma bela toalha bordada e, sobre ela, reinando soberana, uma garrafa de vidro transparente com água até a tampa.
Só então vi que, pela porta, entravam pessoas que ela convidava a molhar a mão com a água da garrafa e experimentar o líquido como se fosse algo muito especial.
Explicava, falando sem parar, no papel de uma apresentadora em dia de gala, que se tratava de água do mar. A mais legítima água do mar, que ela havia colhido pessoalmente em Salvador, e que, pela primeira vez não só era exibida àqueles sertanejos distante do litoral, como também havia a oportunidade de prová-la.
Achei aquilo bonito como quê. E mágico.
Imaginei-a trazendo a carga cuidadosamente embalada dentro da mala de um daqueles aviões mágicos, com o coração palpitando. Tudo era parte de um mundo fantástico.
E como o dia tinha sido de muitos voos, a vi também como uma aeromoça dando instruções sobre a viagem.
Fui até a porta. Um dos convidados regressava do interior da sala, que eu imaginava como cabine de avião, ainda lambendo a mão em que havia despejado o bocadinho da água.
Passou por mim e dirigiu-se aos que estavam aglomerados na calçada:
— A muié tá louca. Tascou sal numa água, botou numa garrafa e tá dizendo que é água do mar.
Pena que não estávamos de fato num voo. Se estivéssemos, conduziria gentilmente aquele passageiro para reclamar do serviço lá fora.
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Música do dia
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.